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Críticas

Cineplayers

Um retrato da solidão e ao mesmo tempo um grande filme sobre a esperança.

9,5

Tanto Cinzas Que Queimam quanto No Silêncio da Noite, obra-prima de Nicholas Ray para a qual este filme de 1952 serve como uma espécie de complemento, são filmes cujo tom e discurso estão inteiramente conectados ao estado de espírito do diretor durante o período de filmagens – não que de uma forma geral este tenha sido algum dia uma pessoa menos pessimista e amarga. Mesmo os títulos sendo importados de suas respectivas obras literárias, o “lugar solitário” (In a Lonely Place) e o “terreno perigoso” (On Dangerous Ground) caem de pára-quedas como representação de seu momento de vida, quando a solidão lhe abatia devido ao término de seu casamento e nada mais restava a não ser o Cinema, local onde exorcizava seus espíritos.

De uma forma um pouco estranha, No Silêncio da Noite acaba tendo seu amargor potencializado se tomarmos por conhecimento alguns fatos ligados à sua realização. Foi durante a produção deste filme sobre um homem que precisa lidar com sua própria violência inconsciente e incontrolável que Nick foi abandonado por sua mulher, Gloria Grahame, coincidentemente a atriz do filme. Ray passou a dormir nos sets de filmagem, que também por coincidência era uma antiga casa onde haviam vivido juntos, sob a desculpa de que precisava trabalhar - para assim esconder de todos o fim de seu casamento (“Nasci no dia em que você me beijou, morri no dia em que você me deixou” é a mensagem de Ray transmitida por Bogart a Grahame no final do filme, melhor e mais dolorosa frase já dita no Cinema).

A primeira seqüência de Cinzas Que Queimam indica de imediato que esse claramente se trata de um filme-conseqüência de No Silêncio da Noite e, especialmente, desta desilusão de Ray com a vida. Após os créditos iniciais, em letras brancas sob imagens da noite suburbana, vemos através de uma rápida montagem alguns policiais sendo recolhidos pelo camburão em suas respectivas casas para se apresentarem na delegacia e darem início ao turno de trabalho. Dois deles jantam junto à família, recebem beijo de despedida da esposa e um adeus dos filhos, enquanto o terceiro, Robert Ryan, encontra-se sozinho no apartamento. Seu movimento se resume a largar um prato sujo na pia da cozinha, juntar o casaco e sair do apertado local com cara de poucos amigos. A imagem de um homem solitário resumida em dois ou três planos.

O que Ray realiza em Cinzas Que Queimam, em relação a No Silêncio da Noite e em respeito à trama, é arremessar o foco para o outro lado. Do homem que precisa lidar com sua natureza indesejada passamos a acompanhar, principalmente durante a meia hora inicial, uma espécie de síntese da visão de Nick sobre a vida noturna da grande metrópole, marcada por crimes, sujeira e a corrupção de valores que substancia o universo do filme noir, tudo através dos olhos de quem precisa encarar, conviver e combater diariamente esta escória: um policial; a figura que, teoricamente, tem como principal objetivo profissional impedir que homens voltem a cometer novos crimes - e representa a tentativa de seguridade social.

A questão arquitetada por Ray é clara. Por debaixo de títulos e funções sociológicas, Robert Ryan e Humprey Bogart representam essencialmente o humano, dentro de sua natureza e, portanto, sofrendo das mesmas fraquezas que, por sua vez, geram imperfeições conseqüentes de seu convívio com o próprio homem. Ambas as figuras participam deste jogo como uma espécie de alter-ego. Tanto quanto Ray, os protagonistas interpretados por Ryan e Bogart são pessoas amargas e que precisam lidar com a solidão e a desilusão. A forma como o fazem não foge muito do que provavelmente todo homem em condições semelhantes faria, independente de ser um roteirista de Cinema, policial ou vendedor de sapatos, transformando qualquer situação em um veículo para reações radicais e animalescas.

Esta conectividade entre ambos os personagens se torna ainda mais evidente quando colocadas lado a lado duas cenas específicas de Cinzas Que Queimam e No Silêncio da Noite. No filme de 1950, Bogart encontra-se prestes a cometer um crime quando, irritado, pega uma pedra e posiciona-se para acertar a cabeça da companheira à beira de uma estrada. Esta mesma reação brutal e instintiva repete-se em Cinzas Que Queimam quando Robert Ryan captura o criminoso que procurava pelas ruas em um beco durante a noite, na conclusão do primeiro ato. A mesma expressão, os mesmos olhares, os mesmos movimentos aparentemente incalculados frente à raiva e ao descontrole, mas agora quem transborda esta violência é justamente o homem que deveria coibi-la.

A cena é divisora de águas da narrativa de Cinzas Que Queimam. Nesta meia hora inicial vemos, apesar destes toques bastante pessoais e mesmo sem a conexão com seu trabalho anterior, um diretor preparando terreno para o que seria um daqueles tradicionais, duros e pessimistas filmes policiais semi-documentais da década de 40 e 50. A captura do tom sombrio e desolador das ruas constrói um panorama bastante promissor, e as escolhas estéticas ajudam a garantir às imagens frescor e intensidade suficientes para impressionar (em certa seqüencia de perseguição Ray faz uso até mesmo de handycam, um recurso bastante raro na época que se tornaria comum no cinema realista da década de 70 – garantindo-se mais tarde como primeira escolha de qualquer realizador que busque tensão de cena).

Depois de Ryan ser enviado para o interior a fim de cobrir um caso de assassinato, quando ninguém mais na corporação agüentava seus métodos agressivos, é que Ray inicia sua verdadeira proeza narrativa: o rompimento quase que completo desta essência de filme de gênero tão bem estruturada no ato inicial. Ryan acompanha o pai da garota assassinada por uma caçada através da neve, seguindo a pista do que seria o assassino, e chega até a residência de uma cega, isolada da civilização e cercada por montanhas rochosas e neve por todos os lados. Descobre aos poucos que a mulher, interpretada por Ida Lupino, vive sozinha, ou melhor, apenas com um irmão. Da mesma forma que ele, a cega precisa lidar com a solidão, mas o faz de uma forma muito mais equilibrada e consciente.

Convidado a passar a noite no local para se refugiar da nevasca, ambos começam a se conhecer melhor, um embate que a cada momento revela uma nova perspectiva sobre os temas-chave de Cinzas Que Queimam. Em determinado momento, entre um bom par de frases memoráveis e cenas de tamanha delicadeza que somente poderiam ter sido capturadas pelas sensíveis e sentimentais lentes de Ray – o primeiro momento de afeto entre ambos, com um simples toque de mãos, é mais potente e representativo do que muitas filmografias inteiras de diretores supostamente reconhecidos por sua sensibilidade aguçada – Lupino ressalta: “os solitários tentam compreender a solidão”, pouco antes de lembrar a Ryan que “pode-se estar sozinho também na cidade”, após receber como réplica a lembrança de que era ela quem vivia isolada do mundo.

A principal questão evocada por este jogo de auto-conhecimento de ambos parece ser o quanto a posição social de cada um influencia em seu trato particular da solidão. Tanto homem quanto mulher sofrem em razão deste sentimento de isolamento, de angústia frente à realidade, mas enquanto um precisa lidar diretamente com o ser humano, seus defeitos e um mundo regido pelo medo que se sente deste descontrole de limites, a outra mantém-se alheia a tudo isso: primeiramente, por estar cega, condição que também representa um motivo especial para sua grande consciência a respeito desta realidade negativa, e em segundo plano por estar fisica e geograficamente isolada daquela realidade presenciada por Ryan na meia hora inicial.

Ao final de tudo, porém, Ray finalmente indica a luz. Cinzas Que Queimam propõe este amargo retrato da solidão, uma condição que filtra o estado de espírito de seu realizador durante o período de filmagens, e o encontro entre duas pessoas que necessitam de um afeto que somente pode ser transmitido pelo contato humano. É ao mesmo tempo um registro pesado e amargo, mas também capaz de pintar a esperança como poucos filmes até hoje conseguiram. Diante da sempre negativista visão do homem estabelecida pela paleta de clássicos elementos do noir, pode-se afirmar que este é um filme a parte no movimento. Já na carreira de Nicholas Ray, que apesar da desilusão sempre guardou em si uma ponta de esperança, basta dizer que embora não seja o melhor – posto que é de No Silêncio da Noite, evidentemente – este é talvez seu filme mais importante.

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