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Críticas

Cineplayers

O embate entre o tempo e a verdade.

9,0
Já estávamos na reta final da competição pelos Redentores ano passado, no Festival do Rio, e a verdade é que foi uma competição toda bem fraca. Aos 40 do segundo tempo, aparece a estreia em longa metragem do jovem Erico Rassi, entitulada Comeback, filme com a qual eu tinha muita má vontade (pela sinopse estranha e pelo título em inglês). Mas não sejam nem façam como eu; Erico Rassi não saiu do Festival com tudo que merecia ano passado, mas seu filme é no mínimo um cartão de visitas de primeira, um trabalho de estreia que parece produto de um veterano, tanto nas inspirações e a forma de expô-las quanto no que traz de novo à bela homenagem de gênero proposta, num jogo de confiança nas nuances que apresenta ao espectador grande esperteza técnica, jogado na companhia do montador Leopoldo Joe Nakata. 

Um estudo de revitalização de gênero que move as peças num ambiente muito longe de sua origem, a começar pelo país, Comeback é um projeto ambicioso na sua meta, a de observar o 'western' revisionista através de uma ótica não só atual como também brasileira. As ferramentas usadas por Rassi são precisas e muito acertadas, as escolhas estéticas remetem ao universo retratado e não deixam dúvidas das intenções, além de provocar carinho imediato a cada nova referência. Rassi parece não apenas ter muito apreço pelo gênero como também conhecimento extremo pelo universo, pois as cenas não somente demonstram carinho pelo passado como também têm construção detalhada. 

Uma espécie de canto do cisne de última hora, o filme ainda nos entrega não apenas a última participação de Nelson Xavier nas telas, como também uma gigantesca atuação dele como o protagonista Amador, um pistoleiro do interior aposentado há alguns anos. Amador recebe a visita do neto de um companheiro de trabalho, um rapaz que tem interesse em aprender o ofício que seu avô desempenhou tão bem. Agora que seu avô está acamado, só Amador pode então passar o conhecimento, ao mesmo tempo que rememora as glórias passadas. E com as aulas, o matador escondido nele reacende... junto com outros eventos de sua vida, que de cotidiana e prosaica passa a dinâmica e emocionante, em muitos sentidos. 

Em paralelo à sua trama, que remete a uma tradição que tantos faroeste já renderam e com a qual Clint Eastwood trabalhou algumas vezes, Rassi inclui também uma analogia sobre a velhice e o tempo - também crucial para Eastwood - e de como a substituição do antigo pelo moderno nem sempre é fácil, mesmo para o novo. Amador atualmente trabalha com manutenção e distribuição de maquinas de caça-niqueis nada rentáveis ou práticas, uma atividade que também será substituída em breve, e o filme deixa isso bem claro. A forma que Amador terá para se fixar na eternidade vem através de um grupo envolvido na realização de um filme que busca um assassino experiente que possa prestar consultoria para eles. Graças a uma famosa chacina que comandou no passado, o protagonista parece o homem ideal para tal tarefa, mas até que ponto todas as suas histórias e feitos são verdadeiros é outro ponto de interesse do roteiro, que une uma primeira parte mais mecânica a uma segunda mais ágil de maneira proposital, como forma de construir uma espécie de renascimento de um tempo passado para fazer jus a um presente que se pretende ser eternizado. A fotografia de André Carvalheira é um achado em matéria de propósito, porque joga as luzes e as sombras todas no protagonista quase ao mesmo tempo, como simbolizando um crepúsculo etário que se recusa a se assumir, e o trabalho de composição de planos empreendido na parceria entre Rassi e Carvalheira é nunca menos que de uma beleza ímpar. 

Em cena, mal dá para acreditar que Xavier já não vinha bem de saúde há alguns anos. O personagem guarda uma chama no olhar que ele mantém intacta durante parte da projeção, e que vira uma explosão de vigor e ferocidade a partir da virada do personagem, e deixa claro o nível espetacular de ator que perdemos recentemente e que aqui, coadjuvado por figuras igualmente talentosas como Everaldo Pontes e Eucir de Souza, prepara o ataque como um tigre que se percebe como a mesma fome da juventude. E é desse tipo de reflexão temporal e de realidade que 'Comeback' se propõe: se por um lado nada pode destruir mais o poder desolador do tempo passado que uma revolução no tempo presente, por outro lado a verdade nada mais é do que uma história circular que de tantas vezes contada se torna verdade, que nada mais é do que uma história circular que, de tantas vezes contada, se torna verdade.

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