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Críticas

Cineplayers

Julia Roberts tira um ano de sua vida enquanto eu tiro duas horas da minha.

5,0

Você, caro leitor, caso seja habitante de uma grande metrópole, caso decida assistir um filme neste final de semana, irá até o shopping mais próximo de sua casa e vai se deparar com um imenso display com a imagem de Julia Roberts, sentada num banco de praça, tomando um sorvete. Julia está na Itália, ao lado dela estão duas freiras, também tomando sorvete. O que está fazendo Julia Roberts, ou melhor, a personagem que Julia Roberts interpreta, sentada num simples banco de praça, na Itália, tomando sorvete ao lado de freiras? Comendo. É exatamente isso que a personagem de Julia Roberts em Comer, Rezar, Amar (Eat, Pray, Love, 2010) foi fazer na Itália: comer. E querem saber o que ela faz no restante do filme? Ela reza. E aparentemente ela ama.

O didatismo evidente no parágrafo superior se faz justificado exatamente pelo filme também ter uma estrutura evidente, onde não há espaço para nada além do que foi anunciado. Por um lado pode ser uma boa coisa, já que como público pagante sabemos exatamente que o que compramos é o que é. E não existe mais nenhum tipo de surpresa em comédias românticas americanas, já faz um bom tempo - (500) Dias Com Ela ((500) Days of Summer, 2009) é um exceção, mas talvez nem possa ser classificada como parte do gênero-, portanto o filme se presta ao que se deve. Mas qual seria o motivo da estranheza causada pelo filme durante quase toda sua projeção?

Comer, Rezar, Amar é uma adaptação de um livro best-seller homônimo, publicado originalmente em 2006, onde a autora Elizabeth Gilbert, até então uma mulher moderna bem-sucedida, casada e com uma condição financeira estável, decide “olhar de verdade” para sua vida, se divorcia do marido e larga tudo para ficar um ano ausente do mundo. Ou melhor, do seu mundo, já que ela decide olhar o mundo de fora. Até agosto de 2010 o livro já havia estado na lista de mais vendidos do The New Yor Times por 187 semanas. O fenômeno é perfeitamente explicado já que o misto de memórias de viagem com terapia de auto-ajuda é um prato cheio para quase todo ser humano que se sinta perdido em sua própria essência (e que de preferência tenha atingido o fundo do poço). Quem não gostaria de ficar um ano fora de casa, não fazendo coisa nenhuma, longe de responsabilidades e se dedicando exclusivamente ao encontro do seu eu interior? Eu mesmo respondo que se me dessem uma oportunidade dessas, iria sem nem me despedir de ninguém. Sendo assim, ler um livro assim (e ver um filme assim) pode causar essa boa sensação de querer uma mudança. É nisso que consiste a auto-ajuda.

Como adaptar uma obra dessas para o cinema? Sendo absolutamente literal e acrescentando à fórmula de sucesso do livro uma estrela absoluta. Daí Julia Roberts, que obviamente está bem longe do protótipo da novaiorquina comum, vira Elizabeth Gilbert e larga tudo pra encher a cara de comida na Itália, passar uns tempos no mosteiro (ou algo parecido) na Índia e reencontrar a si mesma (e a Javier Bardem) em Bali. Roberts é carismática até não poder mais, tem uma risada fácil e espontânea, que até parece indicar que ela não está atuando. Ou que sempre está fazendo o papel de Julia Roberts, não sei. O caso é que é uma atriz competente e neste filme segura umas duas ou três boas cenas dramáticas sem fazer feio. Mas Julia Roberts enfiando a cara numa pizza ou lavando chão de templo sagrado é demais para sustentar um vazio existencial de uma personagem e a busca que ela empreende por conta disso.

A fórmula é eficaz, desde que você deixe de lado o pensamento ou qualquer tentativa de melhor compreensão dos motivos da personagem. Para Gilbert, poderia fazer sentido se dar esse tempo e compreender que o resultado valeu o “sacrifício”, mas caso o público se dedique dois segundos a mais na reflexão sobre a existência dessa mulher e suas decisões, tudo parece superficial demais. É claro que somos treinados para jogar nossas emoções para dentro do filme e a partir do que ele nos prega canalizarmos tudo de acordo com nossa própria bagagem. Qualquer um que for ver o filme vai ter algum problema e vai pensar que uma escapatória fácil pode ser uma boa solução. Mas até que ponto isso é realmente viável e verdadeiro? Como eu mesmo disse, também aproveitaria uma oportunidade dessas para me ausentar do mundo, mas certamente só faria isso caso não pensasse duas vezes. Enfretar problemas e fugir deles podem dar resultados semelhantes em alguns casos, mas são coisas completamente diferentes. Do mesmo modo funciona a avaliação de Comer, Rezar, Amar como obra literária (que eu não li) e como filme: uma segunda reflexão e toda aquela maravilha deixa de existir.

O diretor do filme, Ryan Murphy, é criador de um dos maiores fenômenos culturais americanos atuais, a série musical Glee, que mostra o cotidiano de um grupo de adolescentes de uma escola secundária que se juntam ao Glee Club (uma espécie de coral performático das escolas dos EUA) buscando algum tipo de confiança, aceitação e melhoria de suas auto-estimas (são, quase todos, considerados losers na escola). Glee, assim como Comer, Rezar, Amar, tem personagens que estão fazendo viagens de autoconhecimento e a necessidade de superação é o grande cerne das obras. Opa, grande cerne depois das músicas, no caso da série, e da comilança, das preces e do sexo, no caso do filme. São dois produtos populares que buscam um disfarce de seriedade, mas que na verdade são simplesmente diversão ligeira. No filme, Murphy se vale de nomes expressivos do cinema, como o fotógrafo Robert Richadson (diretor de fotografia dos filmes do Tarantino e do mais recente do Scorsese, Ilha do Medo) e o compositor Dário Marianelli (ganhador do Oscar pela trilha de Desejo e Reparação), para darem uma roupagem pretensamente sofisticada a um filme banal. De tal modo, não deixa de ser estranha a luz imaculada que acompanha Julia Roberts ao longo do filme inteiro, pois ela aparentemente busca ressaltar uma coisa que simplesmente não existe, uma profundidade - a música também faz isso – inadequada ao que está sendo construído e projetado por Murphy e pelos roteiristas.

Mas quem sou eu para querer acabar com o modo como as comédias românticas são vistas, não é mesmo? Desligar momentaneamente nosso senso crítico mais afiado é o que requer qualquer filme que se preste ao romance que faz rir (o que este aqui nem busca muito). Minha crítica seria inútil assim sendo, caso minha estranheza não fosse realmente latente. E os dois segundos de reflexão e observação que eu tomei me permitiram ver o porquê de ter me sentido tão incomodado ao longo do filme. Mas você, caro leitor, pode ser mais esperto e simplesmente compreender que o didático é o que realmente guia um filme protagonizado por Julia Roberts, adaptado de um livro meio que de auto-ajuda, dirigido pelo criador de Glee e chamado Comer, Rezar, Amar. Certamente sairá mais satisfeito depois de atravessar o caminho das longas 2 horas de filme.

E minha palavra, Julia Roberts, é padrão!

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