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Críticas

Cineplayers

Um tributo apaixonado.

7,0
A poetista e contista Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que entrou para a história da literatura nacional como Cora Coralina, era para Carlos Drummond de Andrade “a pessoa mais importante de Goiás”. E talvez a definição superlativa do modernista mineiro não esteja equivocada. Talvez esteja até limitada; Cora Coralina foi uma das figuras mais singulares da nossa tradição poética, misturando figuras evocativas com narrativas que engrandeciam o cotidiano.

Formado em psicologia pela USP, o diretor Renato Barbieri foi um dos criadores da produtora Olhar Eletrônico em 1983, que revelaria também o cineasta Fernando Meirelles e o comunicador Marcelo Tas. Quando cada um seguiu seu caminho, Barbieri fundou a Gaya filmes e passou a dedicar-se a documentários, como Malagrida, sobre o padre jesuíta que divulgou o catolicismo no Brasil e acabou morto por ordem do Marquês de Pombal, e Araraquara - Memórias de Uma Cidade, onde mesclou depoimentos e momentos ficcionais para narrar a história da formação da cidade do interior paulista. 

O interesse histórico e o casamento de estilos marcam presença no encontro de Barbieri com a poetisa no filme Cora Coralina - Todas as Vidas, que retrata as muitas mulheres numa só que habitavam a goiana crescida na virada do século 19 para 20. Os depoimentos tratam da Cora Coralina acadêmica e histórica no básico esquema “talking heads”, promovendo uma viagem semi-imersiva, guiada por algumas das liberdades criativas do diretor e a necessidade de guiar pela mão o espectador pouco familiarizado com a figura enfocada.

O modernismo particular da escritora era definido por alguns especialistas e admiradores como “epilíricos”, mistura do subjetivismo da poesia com a narrativa dos épicos. Tais momentos são enfocados por Barbierit através da leitura de atrizes de poemas de autoria e de cenas com cenários e atores que recriam as cenas montadas de maneira pontual. Zezé Motta, Walderez de Barros, Beth Goulart: com suas vozes, todas são em algum momento Cora Coralina, injetando seu sentido particular através de palavra, interpretação e montagem, os sentidos que os pequenos momentos têm.

Empregar tantas técnicas - atrizes, reconstituição, talking heads, imagens de arquivo - cria um filme heterogêneo, somando momentos que tanto parecem uma reportagem com alguns mais carregados de simbolismo evocativo. Por vezes, essa soma de estilos acaba sendo um tanto distrativa, nos afastando dos momentos mais íntimos com dados históricos e linguagem mais convencional.

Nesse caminho mais informativo, talvez o filme exagere demais em exaltar a figura de Cora Coralina. Como obra biográfica, nesses momentos o filme para por alguns momentos de criar o universo particular da biografada para basicamente “apresentar seu currículo” como devota católica, doceira de mão cheia, pessoa generosa… E por aí vai. Por um bom tempo, o filme não para de engrandecer Cora por todos os lados. Sempre que um talking head assume, o tom eloquente e apaixonado estará de volta.

De outra maneira, o outro filme dentro do filme já confronta bem mais frustrações, contradições, impressões; a criação de cenas semificcionais, a leitura dos poemas, a projeção de entrevistas da escritora nas paredes. É bem mais fluido em sua apresentação, quebrando o gesso da dureza provocada pelas entrevistas e nos dando uma ideia da verdadeira Cora - o que pensava, porque agia da maneira que agia, o que a levou a fazer certas decisões determinantes em sua vida.

Felizmente, tal tom apaixonado não é um defeito por si, uma armadilha para onde o filme caminho. Soam como momentos menos inspirados destacados do conjunto onde estão inseridos, como uma necessidade de voltar ao básico, ao objetivo original, ao invés de caminhar de vez e sem volta para o grande número de imagens evocativas que foram filmadas para ilustrar a poética da escritora.

É um trabalho competente para conhecer e se apaixonar por Cora Coralina; mas talvez só dê para no máximo gostar do filme, que em sua devoção só fez, digamos, meia questão de transcender, representando o universo de maneira até certo ponto criativas, mas retraindo-se em timidez pelo imperativo factual. O “epilírico” de Cora não é transposto para cá, sendo por vezes lírico e quase jornalístico, peças que encaixam de maneira algo dura e forçada, criando meios filmes com seus valores individuais, mas cujo casamento tem um ritmo sabotado, criando alternâncias abruptas que ora chamam o espectador e por vezes o distanciam. 

Mas como atesta a projeção das entrevistas nas paredes, Cora saiu das páginas e virou cinema, ganhou muitas vozes e algumas evocações; pontuado pelos guias, o filme é um simpático cartão de visitas em sua paixão desmedida.

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