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Críticas

Cineplayers

Mickey Rourke e sua primeira jornada ao Inferno.

8,5

No final dos anos oitenta, poucos atores despontavam com mais velocidade rumo ao Olimpo de Hollywood do que Mickey Rourke. Após chamar a atenção de crítica e público em filmes como O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983) e Nos Calcanhares da Máfia (The Pope of Greenwich Village, 1984), o ex-boxeador amador que virou ator abraçou de vez o estrelado com 9 ½ Semanas de Amor (9 ½ Weeks, 1986), que o transformou em um símbolo sexual daquela geração. No entanto, a comprovação definitiva de seu talento veio apenas no ano seguinte, com Coração Satânico (Angel Heart, 1987), uma obra que gerou polêmica à época do lançamento, mas é bastante cultuada ainda hoje.

Dirigido e escrito por Alan Parker a partir do livro de William Hjortsberg, Coração Satânico é um filme que mistura habilmente elementos clássicos do gênero noir – o detetive solitário, os personagens ambíguos, o jogo de luzes e sombras – com o que existe de mais forte no horror psicológico. Parker não perde tempo para apresentar à plateia aquilo que ela verá durante as próximas duas horas: logo na primeira cena, durante os créditos iniciais, o cineasta estabelece o tom do restante do filme, adotando um plano inclinado para mostrar uma figura desconhecida caminhando em um beco escuro, com fumaça saindo do chão. É uma cena já incômoda, composta de maneira impecável em sua lógica de apresentar o aspecto sombrio e a constante presença da morte na trama – sem contar, obviamente, a representatividade da fumaça que vem das profundezas da terra.

A partir daí, a obra desenvolve-se inicialmente como uma investigação detetivesca clássica para, pouco a pouco, configurar-se em uma verdadeira – ou literal – viagem ao Inferno. Essa jornada de perdição vivida pelo protagonista é traduzida em tela de modo quase irrepreensível por Parker e sua equipe, em um trabalho de louvável unidade entre fotografia, montagem e elenco. Coração Satânico é um filme de imagens belíssimas e significativas, com cenas como a do prédio que traz uma única janela vermelha em meio às brancas e a sequência situada em uma praia quase deserta, por exemplo, nas quais Parker e o diretor de fotografia Michael Seresin geram no espectador uma constante sensação de desconforto e de que há algo estranho ao redor do detetive Harold Angel em sua busca por respostas. Utilizando ainda de forma inteligente as sombras e a melancólica trilha sonora com notas de blues e jazz, Coração Satânico reforça constantemente a presença do macabro, levando a plateia a aceitar, lentamente, os aspectos sobrenaturais da trama, que surgem orgânicos diante de uma narrativa tão bem construída.

E mora aí a grande força da obra: a atmosfera criada por Alan Parker. Coração Satânico se desenrola sob um clima opressivo, sufocante, cuja sensação de angústia cresce paulatinamente, refletindo a trajetória do protagonista. Para isso, o cineasta se vale de uma série de recursos que vão sinalizando o desespero exponencial de Harold Angel, dentre os quais o mais significativo talvez seja o calor. É interessante notar como a Nova York do início do filme difere da Louisiana do final; a segunda parece abafar constantemente o personagem, que vai se tornando mais cansado, esfarrapado, o que é notado pelo suor constante em seu rosto. Assim como diversos outros simbolismos da obra, o calor extremo age como uma representação direta da jornada ao Inferno do detetive, uma vez que torna-se cada vez mais insuportável à medida que ele se aproxima de sua conclusão.

Esta, porém, não é a única metáfora presente em Coração Satânico. Trata-se, na verdade, de um filme do qual é possível extrair um significado em cada cena, resultando em uma produção rica em interpretações, que estimula a inteligência do espectador. Os ventiladores, por exemplo, estão presentes durante toda a duração da obra, mas o que representam? Será o caminho em círculos percorrido por Angel? Será a aproximação da morte? Será apenas mais um elemento a reforçar o calor sufocante? Parker – corretamente – não vê necessidade de explicar tudo ao público, o que apenas aumenta o impacto e o alcance temporal de seu filme. Outros elementos também podem ser inseridos nessa categoria aberta a leituras, como as rápidas inserções de um elevador caindo (de modo mais óbvio) ou os próprios nomes de Harry Angel e Louis Cyphre.

O controle de Alan Parker sobre seu filme e sua mise-en-scene também pode ser percebido em outros momentos de Coração Satânico. A apresentação de Cyphre é um exemplo: enquanto conversa com Angel, o advogado Winesapp posiciona-se entre o olhar do espectador e o personagem de De Niro, movendo-se levemente à esquerda no instante em que apresenta seu chefe, apenas então revelando-o à plateia. Trata-se, na verdade, de um mero detalhe dentro de todo, mas um detalhe que demonstra o cuidado do cineasta com cada plano de seu filme. Este perfeccionismo resulta em cenas de grande impacto, tanto visual quanto emocional, como a forte sequência de sexo entre Mickey Rourke e Lisa Bonet, talvez a que mais tenha gerado polêmica quando do lançamento do filme.

A cena supracitada, aliás, é a síntese perfeita do também inspirado trabalho de montagem de Gerry Hambling, outro elemento muitíssimo bem pensado da obra. Durante o desenrolar da narrativa, Parker e seu montador colocam algumas rápidas inserções que, inicialmente desconexas, acabam por fazer sentido eventualmente, como se fossem fragmentos da “memória” de Harold Angel. Da mesma forma, Coração Satânico oferece outros instantes de pura elegância visual, como o belo raccord que associa um ventilador a uma fita e as rimas visuais envolvendo os momentos de sonho do protagonista com aquilo que ele presencia na vida “real”.

Por fim, como sustentação de toda essa riqueza narrativa, vem o impecável elenco. Lisa Bonet despe-se (literalmente) do papel da garotinha inocente que interpretava em The Cosby Show ao fazer de Epiphany um vulcão de erotismo, enquanto Robert De Niro brilha em pouquíssimas cenas – apenas um ator de seu calibre seria capaz de transformar o simples ato de descascar um ovo em algo ameaçador. Mas é mesmo Mickey Rourke o grande nome do filme. Encarnando Harold Angel com entrega total, apostando no naturalismo do Método, o ator é preciso na construção da decadência física e psicológica de seu personagem, culminando em um impressionante trabalho na cena clímax da produção – e sua expressão no devastador desabafo “Eu sei quem eu sou!” é de cortar o coração.

Coração Satânico é filme denso, ousado, que, apesar de certa previsibilidade na resolução da trama, não se acovarda ao abordar temas delicados à época, como iconoclastia, magia negra e sexualidade, além de apresentar uma primorosa construção técnica. A lamentar, portanto, apenas o fato de que tenha sido o auge de uma carreira tão promissora. Embora tenha ensaiado um retorno com o excelente O Lutador (The Wrestler, 2008), o melhor trabalho de Mickey Rourke está mesmo na obra de Alan Parker.

É como se, ironicamente, o próprio ator tivesse feito um pacto faustiano e, nos anos seguintes, Mefistófeles tivesse voltado para cobrar sua dívida.

Comentários (6)

Raphael da Silveira Leite Miguel | segunda-feira, 07 de Julho de 2014 - 23:37

Depois dessa ótima crítica, e por adorar os seus protagonistas (Rourke e DeNiro), preciso ver esse filme urgentemente!

Wellington Marques | domingo, 24 de Agosto de 2014 - 22:07

Se no ato final Alan Parker tivesse sido mais Polanski e menos Parker, com certeza seria uma das maiores obras-primas do gênero.

Caio Henrique | segunda-feira, 25 de Agosto de 2014 - 10:26

"Se no ato final Alan Parker tivesse sido mais Polanski e menos Parker..."
How is that even possible sir?!?

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