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Críticas

Cineplayers

Pequenas transformações.

6,5
Dotado de má vontade, um espectador pode até ser tentado a definir que o longa-metragem de estréia de Marcelo Caetano como um daqueles filmes onde “nada acontece”. Mas tal impressão pode ocorrer por justamente sempre ter algo acontecendo na vida dos seus personagens. O dia-a-dia do jovem desenhista de roupas Elias não tem uma perturbação central que o jogará em uma jornada de protagonismo individual que ruma para uma catarse, mas várias pequenas revoluções que juntam costuram o que é percebido por sua rotina. Em um certo sentido, o filme passado em São Paulo e dirigido por um mineiro tem semelhanças com um certo nicho recente do nosso cinema - egresso dos curtas, Caetano trabalhou como diretor de elenco em Aquarius e assistente de direção em Boi Neon e Tatuagem

Do filme de Kléber Mendonça Filho, parece ter tirado o estudo de personagem intenso. Do longa sobre vaquejada de Gabriel Mascaro, a observação de uma realidade crua e alienante minando a sensibilidade de um indivíduo; e do longa sobre homossexualidade durante a ditadura de Hilton Lacerda, o olhar extremamente íntimo e naturalista sobre seus personagens. 

Um destaque de Corpo Elétrico é justamente evitar a teatralidade tanto em seu roteiro - sem viagens psicológicas com pontos culminantes - quanto na linguagem de sua direção, apostando não em movimentos de câmera e cortes que dialoguem, mas sim longos planos sequência que podem dar conta de conversas, mas também centram-se exaustivamente sobre olhares, silêncios e inquietações. 

Testemunhar o relato de um acontecimento muitas vezes é para Caetano mais importante do que narrar eventos excepcionais em si. Pois dentro de Elias, que divide o tempo entre seus muitos relacionamentos com ex-namorados, flertes de boates e casos atuais,  seu trabalho em uma confecção e as idas à bares e festas com colegas de trabalho, há outros filmes existindo.

Quando vemos uma cena onde flerta com o segurança de o shopping, não vemos todo esse relacionamento em sua plenitude; ele terá a metade supostamente mais interessante para outros filmes contado na cama do ex-namorado, onde entre cigarros e desvios do assunto original tal momento especial dentro do seu cotidiano ganha contornos de mais uma experiência que afeta seu corpo presente na câmera. 

Corpo esse que é desnudado logo na segunda cena, fisicamente. Que é desnudado enquanto personagem e pessoa em breves esboços de conflito que a trama pinga aqui e ali de maneira algo artificial e didática, pois destoam das conversas naturalistas mas não apresentam maiores consequências. 

Com Hilton Lacerda como roteirista, o drama de observação aborda o mundo operário e LGBTQ de maneira não excludente. Aos poucos descobrimos as origens de Marcelo, seus interesses e suas falhas não apenas através de seus relatos e de suas respostas mas de suas ações. Quando leva sem pedir tecidos que foram jogados fora no depósito de sua confecção para drag queens de periferia (interpretadas por Márcia Pantera e MC Linn da Quebrada), conhecemos não apenas seu círculo social, mas sua generosidade, sua disposição de colocar a necessidade dos outros antes da sua. 

Da mesma forma, quando é reticente em uma reunião com o chefe, não sabendo planejar seu futuro, ou quando é deliberada e assumidamente responsável contemplamos sua falta de ambição, sua falta de vontade em transcender as próprias barreiras; o mundo onde vive têm pessoas leais, que o tratam bem e lhe tem amizade. Entre suas muitas saídas para beber, seja com todos os colegas, com o imigrante de Guiné-Bissau Fernando, coleciona revelações para si; após sair com as drags, explora sua sexualidade de maneira não vista antes nem depois; quando sai com os colegas, tanto reafirmações quanto desavenças vêm à tona; junto com o colega imigrante, descobre que não o atrai sexualmente mas que tem sua amizade.

Com o título extraído do poema de Walt Whitman “Eu Canto o Corpo Elétrico”, exaltação do poeta americano aos trabalhadores do mar e sua glória física em trabalhar no campo, o filme de Caetano muito recorda em um estado ainda amadurecendo trabalhos de chineses mestres da observação como Wang Bing, Jia Zhang Ke e Tsai Ming-Liang, que cultivam um interesse quase documental em estudar seu personagem, observando-os antes de desenvolverem e sendo alguns dos principais responsáveis por divulgar ao mundo apenas por seus longos silêncios e câmeras incisivas a transformação da sociedade e dos indivíduos da China nas últimas décadas. 

Amadurecendo porque mesmo terminando de forma abrupta, o longa já esticava-se em seu ponto (“dessacralizar o sexo”, como define o diretor em matéria para o UOL, tornando-o normal e parte da vida) de maneira redundante, esboçando mas não resolvendo conflitos, sendo que a emoção de seu filme vem toda da observação, da mágica dos pequenos momentos, de nunca atravessar um cena sem levar algo da mesma. Quando quer sugerir a constatação de algo, provando um ponto, o filme cai; quando apenas observa em sua economia formal, sabe trabalhar a naturalidade para despertar o interesse de olhos e ouvidos muito bem, nos fazendo caminhar lado a lado de um Brasil ignorado. Ainda fica aquém do que poderia ter sido, mas cultiva elementos de um projeto de uma filmografia autoral que começa de maneira mais discreta e mais bombástico que muito de seus colegas, sendo portanto uma obra de interesse para se pensar os rumos que nosso cinema esboça para o futuro. 

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