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Críticas

Cineplayers

O adeus de um subversivo.

8,0
Dentre todos os novos cinemas que eclodiram nos anos sessenta e setenta, a Polônia foi um dos países que mais incubaram diretores que teriam uma longa vida na Europa e em Hollywood, dirigindo clássicos da cinematografia mundial. Nomes facilmente reconhecíveis como Roman Polanski, Andrzej Wajda, Jerzy Skolimowski e Krzystof Kieslowski fazem a cabeça de cinéfilos há décadas. Seguindo esse panteão de perto, há Andrzej Zulawski e seu cinema único. 

Zulawski é marcado por um cinema polêmico, com as inspirações neorrealistas que influenciaram cineastas poloneses desde a década de cinquenta, desaguando em uma dramaturgia desgovernada e deliberadamente anti-convencional, com diálogos sarcásticos e reflexivos, curvas de ação dramática inesperadas e os elementos da misé-en-scene, como movimentos de câmera, edição de trilha sonora e montagem de maneira provocativa. Controverso ao lançar A Terceira Parte da noite e O Diabo e alçando fama internacional com Possessão, Zulawski tornou-se notório ao recusar construções convencionais e buscou praticar um cinema bastante particular ao longo de seus 45 anos de carreira, encerrados no início desse ano. 

Cosmos, seu canto de cisne, sintetiza bem todas as ideias que marcaram sua carreira; classificado pelo autor como um “mistério noir metafísico”, o recorte da vida de dois homens que se hospedam na casa de uma família já sofre perturbações desde o início, com Zulawski inserindo signos: à medida que conhecem a excêntrica família - a sobrinha com deformação facial, a matriarca com acessos de fúria, o impagável padrasto que não fala nada com nada, e a filha aparentemente perfeita com um marido igualmente perfeito - maus presságios aparecem aqui e ali - um pássaro morto pendurado dá lugar a blocos de madeira que dá lugar a elementos estranhos nas dependências da casa. 

Os dois homens são figuras igualmente excêntricas - Witold falhou nos exames e sonha em escrever um livro e Fuchs resolveu dar um tempo da empresa de moda onde trabalha. Seus diálogos são permeados de referências sobre literatura, cinema e filosofia, indo do relaxamento até a conspiração insana sobre quem estaria deixando aqueles sinais pela casa. A referência mais explícita é o filme Teorema de Pasolini, citado mais de uma vez ao longo do filme, admitindo sua influência na construção de pegar símbolos que já conhecemos e subverter com elementos externos.

Cosmos é um filme intenso, com diálogos nonsense e assustadores em sua extensão, dando a tônica de uma representação histérica, muitas vezes até mesmo careteira e grotesca. Como bem observado a certo ponto do filme, nenhuma cena está em silêncio: tudo está sempre uma verdadeira orgia de diálogo, sons incidentais e música, com velocidade aumentada ou refreada a gosto da preferência do diretor em dilatar ou comprimir nossa percepção da busca dos dois homens pela pessoa pervertida que está vestida em pele de cordeiro. 

No lado noir descrito pelo diretor, que exigiria o clima ambíguo e uma femme fatale, sua versão do gênero apresenta constantes intervenções temporais que vão e voltam, experimenta mais de uma conclusão para cada sequência, interrompe a trilha sonora repentinamente, retrata a intensidade do protagonista: logo o culpado não demorará a surgir e teremos uma catarse que basicamente junta tudo o que tivemos até então: o grotesco, o nonsense, a caricatura, a repulsão, a violência; com isso o que temos é o turbilhão vital de Zulawski, que se por vezes ensaia uma construção mais regrada em certos movimentos de câmera ou enquadramentos, logo está preparado para mandar tudo abaixo. Na busca pelo cinema que já conhecemos, nos deparamos com uma visão de cinema que faz questão da reinvenção e do ineditismo constante. 

Se tal objetivo é alcançado ou não, é passível de discussão; a misé-en-scene do diretor é facilmente identificável para aqueles que viram outras obras suas e já espera a anarquia, as cenas intermináveis filmadas em plano sequência, os inserts sugestivos e desconfortáveis. Zulawski pensou o cinema anti-establishment como poucos, mas nunca de forma inofensiva ou insípida; seu espírito sempre foi o de um subversivo, o de um provocador, daqueles que estão prontos para apontar a falsidade de construções sociais, dramatúrgicas e estéticas e dirigir baseado no vômito, no esporro, no barulho. 

Sempre se sai emocional e sensivelmente esgotado de um filme do polonês e, dessa vez, não é exceção: agora, em seus últimos segundos de projeção, se dá ao luxo de terminar o filme várias vezes, inserir cenas de bastidores e questionar o próprio fazer cinematográfico e sua construção de um mundo fechado e calculado. Metafísico como era, sua preocupação era com a razão da criação em primeiro lugar, e o resto do mundo que se esforçasse para acompanhar. E seu último suspiro na tela grande é um filme digno de sua filmografia, ainda que não com o mesmo brilhantismo. Solidamente fluido, racionalmente selvagem. Como todo bom Zulawski.

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