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Críticas

Cineplayers

Um estudo sobre o olhar e um dos filmes mais requintados de Peter Bogdanovich.

8,5

Daisy Miller é o filme conhecido por ter iniciado a decadência de Peter Bogdanovich. Antes de tudo é preciso refletir sobre algumas circunstâncias que o cercaram à época do lançamento. Trata-se de um filme de época realizado num período em que o cinema americano praticamente aboliu esse estilo, restringindo-se quase que totalmente aos filmes urbanos e contemporâneos (quase sempre sob um forte viés de critica social). O próprio Bogdanovich era conhecido pelo sucesso de seus filmes anteriores em que reciclava e homenageava clássicos e ícones da Era de Ouro de Hollywood, o que com certeza contribuiu para o choque e o conseqüente desprezo para com essa guinada na sua carreira. Em Daisy Miller sente-se a necessidade deliberada de esvaziamento, no sentido de retirar as antigas evocações nostálgicas e tornar todos os comportamentos ambíguos, renovando o seu cinema ao abrir mão de muito que já tinha se desgastado. Como se fosse preciso começar do zero mais uma vez.

Acrescenta-se a isso tudo o fato de que Bogdanovich realizou o filme especialmente para Cybill Shepperd, o que fez com que os críticos o enxergassem como um mero veículo para a namorada do cineasta. Mais de três décadas depois é possível assistir Daisy Miller com um certo distanciamento para que o filme seja avaliado com mais justiça. É uma obra com um trabalho cênico excepcional, os seus espaços aparecem sempre como se estivessem em fluxo, além de um completo domínio de planos subjetivos, e um uso cuidadosamente dosado e riquíssimo de closes. Os travellings também são muito bem utilizados, especialmente o último, com a câmera se afastando de Winterbourne (o protagonista masculino), isolando-o e se juntando ao fade para branco.

Hoje em dia Cybill Shepperd já não representa muito ao espectador, mas nos anos setenta era fortemente vista como uma típica garota norte-americana, nunca como uma dama na alta sociedade vitoriana do século XIX, o que causa um curto no espectador parecido com o que fere a retina de Winterbourne. Bogdanovich pretendeu contrapor os modos de vida e pensamento norte-americanos e europeus (Cybill é uma jovem americana de férias na Itália, enquanto ele é um expatriado que passara a vida inteira na Europa, como que não pertencendo a lugar nenhum). A câmera de Bogdanovich está visivelmente encantada por Cybill, e isso é perceptível durante o filme inteiro, sem que esse detalhe prejudique a estrutura do filme, visto que a obra é sobre o olhar de um homem sobre Daisy, envolto em dúvidas, incertezas e hesitações.

Por falar no protagonista masculino, acredito que poucos dramas românticos sejam estrelados por um ator tão difícil de cair na simpatia do grande público quanto Barry Brown, o que se por um lado reforça a aura de tristeza que a obra carrega, por outro lado foi também decisivo para o repudio da maior parte das platéias para com Daisy Miller. O seu Winterbourne é sorumbático, melancólico, sem carisma e beleza. Triste mesmo quando sorri, não cativa e nem seduz, em perfeito acordo com a essência de seu personagem (Brown se suicidaria anos depois).

Um casal tão improvável quanto Barry Brown e Cybill Shepperd só poderia estar numa história de um amor que não se concretiza, da tragédia de um homem que não consegue entender os jogos, o comportamento livre, provocante e independente de uma mulher, e que por isso, sem querer abriu mão do que poderia ser o grande amor da sua vida. Winterbourne é sóbrio demais para um apaixonado, e essa é sua ruína. A reviravolta perto do final é desconcertante, porque demasiado abrupta, e isso também incomoda o espectador, por vivenciar o mesmo sentimento frustrante pelo qual o personagem passa.

Daisy Milleré uma obra deslocada na filmografia americana dos anos setenta, diria que um objeto quase alienígena dentro daquele período. Delicado e pungente, traz algumas das mais belas tomadas de toda a carreira de Bogdanovich (é tão visualmente requintado que por vezes faz pensar em Barry Lyndon, para ficarmos em outro filme da época). É um dos pontos altos do diretor.

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