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Críticas

Cineplayers

Lisérgico e sem sentido aparente, é um grande cult da mais delirante época da sociedade norte-americana.

8,0

O terço final da década de 1960 foi um período delirante na história da sociedade americana. Vivendo em meio ao culto da liberdade de expressão, do amor livre, carnal, sem quaisquer barreiras, da lisergia e do ápice do “rock n’ roll”, os jovens gastavam seus dias sem qualquer outra preocupação além de... viver a vida em liberdade, transar, usar o máximo de drogas possível e ouvir rock n’ roll. Era a fase da psicodelia, do movimento hippie, uma incandescente contracultura que chegaria tapeando com louvor a gorda face do conservadorismo que se moldou em todo o mundo com o término da segunda grande guerra – algo que, de certo modo, é até compreensível, ao passo que a aproximação da sociedade com valores humanos mais “certinhos” foi importante para reacender a esperança apagada pelos monstruosos carrascos do nazifascismo.

 

Esta loucura toda também teve reflexo no cinema, que já vivia há cerca de uma década as conseqüências proporcionadas pelo surgimento da Nouvelle Vague francesa, de Truffaut, Godard, Resnais e companhia – que quebrou com diversas características convencionalistas do cinemão hollywoodiano, tanto narrativamente quanto na decupagem das obras. E foi bebendo destas duas fontes que Russ Meyer (de Fast, Pussycat, Kill! Kill!), um dos precursores do cinema “underground” estadunidense (que teve como sucessor o polêmico e excêntrico cineasta John Waters, de Pink Flamingos), realizou aquela que é considerada por muitos a grande produção de sua carreira: De Volta ao Vale das Bonecas (1970), uma obra de arte lisérgica e totalmente inclassificável que se tornou uma das mais cultuadas e importantes já feitas nessa linha de cinema.

 

Roteirizado por ninguém mais ninguém menos que Roger Ebert, atualmente o crítico de cinema mais renomado em todo o mundo, De Volta ao Vale das Bonecas faz parte daquele vasto grupo de filmes que deveriam vir com os dizeres “ame ou odeie” rotulados na testa (caso os filmes tivessem testa, é claro). Na verdade, é algo tão incomum, tão diferente de tudo o que havia sido feito até então, que provavelmente só conseguirá ser apreciado por quem realmente estiver proposto a se doar completamente ao universo da obra. Sem preocupação alguma com coerência narrativa ou composição de personagens, Meyer, em seu primeiro e único trabalho realizado com aval financeiro de um grande estúdio de cinema hollywoodiano, realiza um verdadeiro coquetel de sexo, drogas e rock n’ roll, porém muito mais voltado à sátira, ou melhor, à caricatura deste estilo de vida, do que necessariamente ao seu retrato. 

 

A história, como o próprio letreiro que abre o filme conta ao espectador, não tem ligação alguma com O Vale das Bonecas, obra literária de Jacquel Susann que havia sido transportada às salas de cinema em 1967, tendo Sharon Tate como protagonista – pouco tempo antes de ser brutalmente assassinada, no famoso caso do maníaco Charles Manson. Aliás, originalmente, a intenção era mesmo de se realizar uma espécie de pseudocontinuação, mas a idéia foi totalmente descartada após alguns percalços jurídicos – o que subverteu a intenção dos realizadores, transformando, assim, a idéia de pseudocontinuação em sátira mesmo, não necessariamente do filme em si, mas sim do universo em que ele foi desenvolvido. Para tanto, Ebert e Meyer pouco se preocupam em “contar uma história”, criando diversas subtramas (ou melhor, realizando a obra apenas com subtramas, já que não há uma que ganhe qualquer destaque frente às outras) que deságuam em situações oníricas, absurdas mesmo, sempre com muita música e humor sarcástico.

 

As protagonistas da obra, a princípio, são um grupo de garotas que possuem uma banda de rock, que partem para Los Angeles em busca de fama e sucesso. Ao chegarem lá, são inseridas em um círculo social bastante caricato, que brinca com essas características principais da contracultura social da época: vivendo em um mundo de festas, glamour, muitas drogas e mulheres nuas (muitas, mas muitas mesmo!) saltando de um lado para outro da tela tal qual lebres no cio, elas iniciam um processo de reestruturação idiossincrática, largando a visão do mundo que possuíam em sua terra natal e se jogando gostosamente aos prazeres da vida. Com isso, vão aparecendo diversos outros personagens, e um círculo de situações vertiginosamente excêntricas se fecha para não abrir mais – compondo um roteiro que vai, aos poucos, se auto-satirizando de maneira divertidíssima, brincando também com diversos clichês cinematográficos. 

 

Analisando de forma mais profunda, é constatável que uma obra dessas, que se fecha dentro de certo período histórico e é montada exclusivamente acerca de suas características, tem todas as chances de ser transformada automaticamente em um produto datado, visto que o tempo muitas vezes se encarrega de enterrar certos conceitos, não permitindo que gerações futuras compreendam-nos. Não é o caso de De Volta ao Vale das Bonecas. Mesmo que tenha sido feito exatamente dessa forma (porém, com uma grande diferença, já que o tempo não tratou de acobertar a referida época – pelo contrário, trouxe uma nostalgia imensa a quem viveu e até mesmo a quem gostaria de ter vivido o período), diversas outras qualidades transformaram a amalucada empreitada de Meyer no submundo do rock n’ roll e da lisergia em um produto cinematográfico maravilhoso. 

 

Primeiramente, é inegável a impecabilidade técnica da produção. Aliás, surpreendentemente inegável, a quem esperava algo que fizesse jus à tosquice não menos inegável da história. Com uma verba relativamente grande dos estúdios Fox à disposição, fato inédito e único em sua carreira, Meyer fez questão de exagerar no bom gosto da composição cênica. A direção de arte e a fotografia de De Volta ao Vale das Bonecas são excepcionais, dando uma verdadeira aula a muitos artistas cuja pretensão é seguir a linha “séria” do cinema. Desde a construção dos cenários, apostando na diversidade abundante de cores, típica do psicodelismo, até o trabalho bastante equilibrado no que tange ao controle de câmera, tudo serve para apresentar ao espectador a grande diferença de talento que Meyer possuía em relação a outros cineastas do estilo. É trabalho de profissional mesmo, que comprova, a quem duvidava, a grande potencialidade técnica do diretor. 

 

Outro fator determinante para a boa funcionabilidade é a montagem, que viria a ser revolucionária dentro do cinema comercial hollywoodiano (seguindo os passos dados pelos supracitados autores da Nouvelle Vague, em especial Jean-Luc Godard). Com cortes rápidos, frenéticos, e planos que raramente duram mais do que cinco ou dez segundos, o trabalho de edição da obra, além de antecipar um estilo que viria a explodir décadas mais tarde no mundo cinematográfico (mais precisamente depois do surgimento do videoclipe, e que seria conhecido popularmente como o estilo “MTV”, pungente aos olhos mais conservadores), também foi de grandiosa importância para que Meyer conseguisse acobertar a principal falha de seu trabalho: a inexpressividade e o amadorismo de seus atores e atrizes, que, como o próprio autor afirma, não foram escolhidos pela qualidade de suas atuações, mas sim pela “gostosura” de seus corpos, já que, constantemente, teriam de ficar nus em frente às câmeras – o diretor, aliás, foi um dos primeiros fotógrafos da revista Playboy, o que por si já explica a obsessão.

 

Aliás, a grande ousadia de Meyer em De Volta ao Vale das Bonecas é justamente esta: o diretor, já consagrado pelo grande desfile de peitos femininos que proporcionava em suas produções independentes, manteve o espírito e a ideologia característicos em seu trabalho e construiu, mesmo em uma produção de estúdio, um verdadeiro mostruário de belos corpos nus (femininos, claro), permeando a obra com diversas cenas de forte cunho sexual e até mesmo uma seqüência extremamente erótica entre duas mulheres, uma ousadia tremenda para a época – que, por sinal, é apresentada em um terceiro ato absurdamente genial, que subverte completamente o estilo da obra, acrescentando à narrativa referências ao nazismo e ao caso de Charles Manson (embaladas por ironia completamente escrachada, por mais paradoxal que isso seja) que constituem um banho de sangue recheado de seqüências de pura violência gráfica. Um final fantástico para um filme não menos sensacional. Cult movie do mais alto nível.

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