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Críticas

Cineplayers

Rivalidade e intercâmbio.

7,0

Quando foi anunciado que um remake da bela fábula sueca dirigida por Tomas Alfredson seria produzido em Hollywood, punhos ergueram-se em guerra declarada à política de reciclagem à que a indústria ianque submete as boas ideias vindas de qualquer limbo comercial exilado além de suas fronteiras. Fala-se na falta de criatividade, de disposição para ousar, de vergonha na cara na transfiguração de belas peças de arte em simples enlatados. Eu, enquanto consumidor, devo dizer que muito sinceramente não dou a mínima. Nenhum remake detém o poder de incidir sobre sua referência. Do ponto de vista do espectador, é um filme a mais, e quanto mais filmes melhor. A quem possui uma opinião que vá de encontro a essa, é importante esclarecer desde já que Deixe-me Entrar (Let Me In, 2010) é exatamente o que a maioria condena: um filme europeu traduzido em linguagem e iconografia americanas. É um remake literal, não uma adaptação do mesmo material que deu origem ao filme sueco. Reeves se funda na obra de Alfredson, não na de John Lindqvist, o que, para o bem e para o mal, não permite que se assista e que se analise seu filme sem que um diálogo latente se estabeleça entre ele e o original, de modo que não tenho como escrever um texto suficiente sem falar quase tanto de Deixa Ela Entrar (Låt Den Rätte Komma In, 2008) quanto de Deixe-me Entrar.

Há tudo o que já foi dito e que, por ter sido replicado por Reeves, precisa também ser repetido: Deixe-me Entrar/Deixa Ela Entrar é uma fábula do lado negro da infância, do horror e da verdade esquecida a respeito dessa fase: de que a criança é sozinha e habita um mundo próprio onde adultos são apenas espectros intermitentes, vagos e incapazes de estabelecer contato. Pais, professores, psicólogos... todos vultos, todos estranhos. Os problemas de uma criança funcionam em um calabouço emocional a que ninguém tem acesso, em um pseudoautismo que guarda consigo emoções primitivas, ainda sem freios sociais, e a óptica fantástica — meio realista/meio imaginativa — das coisas que o cercam.

Sob essa perspectiva, nada mais apropriado que povoar de monstros e assombrações este mundo etéreo da infância, exatamente como já fizera O Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999) e, em outra esfera, Paranoid Park (idem, 2007). Deixe-me Entrar traz o espírito do cinema independente de Van Sant fundido no esqueleto do cinema de gênero ao qual Shyamalan recorreu; o desenvolvimento orgânico e progressivo da narrativa entrecortada pelas figuras aliens do vampiro, do serial killer, e pelos pontuais exercícios de mainstream. É onde mora a principal e mais positiva diferença entre Deixe-me Entrar e Deixa Ela Entrar.

Aluno do oitentismo e representante em potencial da nova geração, Reeves evolui o flerte com o horror de Alfredson a um namoro passional bem americano; a começar pela simbologia, desde o uso da máscara até a riqueza de detalhes na reprodução dos métodos do assassino, elementos emprestados do slasher e que regionalizam Deixe-me Entrar traçando sobre ele uma inegável digital hollywoodiana, polegar ultrajante marcado sobre a obra de arte sueca (a que cabe duas interpretações, questão simples de opinião. Os românticos acham uma afronta; eu acho uma afronta bem interessante).

Se Alfredson valia-se não do elemento de horror em si, mas de seu reflexo unidimensional cujo efeito alimentava-se no rico punhado de imaginário popular que carrega (a figura do vampiro; no caso, liberada da produção de efeitos de gênero em cena — terror, suspense, etc. — para infligir um sentido que é estéril em relação ao seu propósito original, reencarnada então como alegoria, como fragmento reinventado por Alfredson para produzir em um painel mais amplo efeitos de sentido humanos), Reeves realinha os signos em sua formação original e premia o espectador com um filme que não busca uma segunda significação através do elemento de horror vazio em si, mas o catalisa para funcionar também enquanto cinema de gênero, sem o prejuízo (o que é mais importante) da seara já cultivada por Alfredson.

Reeves não tira nenhum coelho da cartola nem inventa nada de novo, apenas preenche espaços que Alfredson havia deixado vazios. E ele é talentoso na busca das sensações, tem a veia pra construção do suspense e de uma nota de bizarro que foge ao alcance de Alfredson, tratando com carinho fetichista cada oportunidade para exercitar um pouco da velha e boa violência gráfica. Alfredson sugere; trabalha a morte num plano mudo e confidente, restando para o espectador o que avulta de uma ação corrente em níveis tácitos. Reeves não. Reeves é hardcore, é explícito. Detalhes simples largados no remake determinam efeitos gritantes quando a mesma cena do filme sueco é posta ao seu lado. A mulher arrancando pedaços de carne do próprio braço antes de entrar em combustão instantânea no quarto do hospital (matando também a enfermeira, detalhezinho perturbador ausente no filme de Alfredson), ou o olhar do investigador ainda vivo enquanto tem sua jugular mastigada, tentando com as últimas forças tocar a mão do garoto que, pela mais fina das crueldades, parece se estender em sua direção, apenas para alcançar a maçaneta da porta que se fecha secamente, apagando a tela em pessimismo. Indícios das intenções de Reeves, de alguém que quer chocar por chocar, utilizar o mau gosto deliberado e despertar reações no espectador que, para a trama, são irrelevantes, mas para o sabor da experiência são fundamentais.

Apesar de este matiz mais vivo de terror pasteurizado funcionar melhor que a frieza de Deixa Ela Entrar na maioria das vezes, há momentos que ilustram as diferenças entre as duas formas de execução e que fazem justiça à mecânica polida do horror segundo Tomas Alfredson. Como o retrato de Eli transformada por um artifício genial, mostrada por ele de relance simplesmente como uma mulher mais velha, uma outra pessoa. No caso de Abby, Reeves apela ao folclore da maquiagem pesada, da voz alterada e das lentes de contato, o que é divertido, mas jamais perturbador como o efeito extraído por Alfredson. Ou então na fantástica cena original da piscina, onde a crueza de elementos, a câmera estática e o vácuo sonoro produzem um resultado bem superior ao obtido por Reeves, com todo o sangue, os gritos de desespero e as cabeças tracejantes passando em frente à camera. São notadamente linguagens distintas, entendimentos diferentes de cinema, sem que nenhum deles esteja errado dentro do seu contexto particular. Não faria sentido Alfredson buscar por elementos que William Friedkin usou em O Exorcista (The Exorcist, 1973), mas para os propósitos de Reeves, é uma referência apropriada.

As poucas intervenções narrativas de Reeves na arquitetura-matriz desenhada por Alfredson são pontuais. Reeves elimina o peso extra e, apesar de os dois filmes terem a mesma metragem, o fluxo do ritmo de Hollywood infiltra-se na cadência do original alterando-a substancialmente, ainda que esta siga dominante, e talvez este seja maior problema de Deixe-me Entrar: o que parece ser um excesso de respeito para com o original. Um diretor absolutamente seguro de si faria mais que alterações simples de montagem (como o artifício que abre o filme, e que é correto: o início sueco não condiz com o ritmo americano); revolveria a estrutura e a moldaria à sua vontade. Falta uma violação maior à obra original, mesmo que Reeves, dentro desta linha magra que traçou para si mesmo, guardando a narrativa tecida por Alfredson em uma caixa blindada, consiga impor ao filme sua própria caligrafia.

Ainda que as cenas dos ataques do vampiro e do assassino mascarado componham mesmo a verdadeira cinemaland de Matt Reeves, a sua impressão enquanto autor (e não mero reprodutor) sobre o material original corre também por poços de sentido mais profundos, também por uma compreensão madura de linguagem cinematográfica que não deixa de ser surpreendente vinda de quem para todos os efeitos só havia dirigido Cloverfield - Monstro (Cloverfield, 2008)  - exemplar que, por mais interessante, não compartilha da lógica, da engenharia e nem dos instrumentos usuais no cinema, e que portanto não deveria servir como a mais apropriada das referências para um segundo trabalho.

Reeves toma decisões e ousa com virtuosismos que invadem e desafiam a referência de Tomas Alfredson, introjetando aos poucos seu cinema e rivalizando em cena elementos com a narrativa ainda cristalizada do original sueco. A câmera fixa durante o acidente de carro (e o próprio acidente), a exclusão das cenas com o pai, a perda de importância dos vizinhos e a introdução do investigador de polícia (figura histórica, afinal, do cinema americano). Mas a mais fundamental das mudanças é mesmo estética. Reeves absorve a luz alaranjada das locações no Novo México e sentencia uma partição que não existia (ao menos não enquanto manifestação imagética) em Deixa Ela Entrar: o dia e a noite/o real e o fabular/a vida e a fuga.

À luz do dia a realidade é cansada, solitária; enquanto a noite se despe prolífica e misteriosa. A noite é um baile de máscaras. Feiticeiros e criaturas mágicas se revelam, e o vale encantado que é o playground do condomínio (universo particular de um sonho onde Owen é o agressor onipotente) enche-se de uma luz quente para abrigar as descobertas, o sentimento incipiente; para expor o que não se vê sob a luz fátua do inverno: monstros, répteis, vampiros e a ameaça do amor rudimentar, este último o mais perigoso dos predadores.

É linda e macabra a construção do amor sob uma dinâmica parasita, pela satisfação das necessidades de seus amantes, pelo sentimento fundado não em um princípio espontâneo, mas em requisitos, em funcionalidades. Tão artificial e específico quanto uma ferramenta. Abby e Owen se aproximam para preencher lapsos um do outro: abastecerem-se da atenção que a realidade e a sociedade às quais não se encaixam são incapazes de fornecer. Almas marginais, cansadas de vagar sobre a Terra e cansadas de descobrirem, dia após dia, que o mundo não tem nada de que elas possam precisar - que tudo de que precisam na vida é simplesmente ter uma à outra. Abby protegerá Owen e Owen protegerá Abby até que a morte, que um dia os uniu, volte para separá-los. Até lá, um se alimentará do afeto e do cuidado do outro. Como vampiros.

Comentários (1)

Robson Oliveira | quarta-feira, 06 de Fevereiro de 2019 - 14:52

Gostei mais dessa versão que o original. Muito bom!

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