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Críticas

Cineplayers

Família e tradição questionados num quase póstumo conto de terror.

7,0
Através de uma revisitação ao folclore judaico, Demon é uma grande desbaratada na tradição, e na instituição milenarmente estabelecida como fortaleza de sua perpetuação: a família. Piotr é um londrino prestes a se casar com a polaco-judaica Zaneta. O casal herdará a casa da família, uma bela construção de campo, erguida numa ilha cujo acesso se dá através de uma balsa. O casamento de Piotr e Zaneta ocorrerá nesta mesma casa, mais especificamente num galpão adjacente à construção principal. Enquanto Piotr, no dia anterior ao do casamento, maneja um trator afim de livrar o jardim da casa de galhos e árvores apodrecidos, ele encontra ossos humanos enterrados no seu quintal.

Formatado em moldes amplamente divergentes do terror clássico (ou do terror dramático clássico, por sinal), Demon parte do genericismo antes de falar sua língua própria. Temos Piotr, silenciosamente às voltas com sua descoberta, sendo rapidamente atormentado por vozes estranhas e aparições assustadoras, antes de desaparecer numa simbólica poça de lama em frente a sua casa. A partir daí, as estruturas se rearranjam por completo. Vemos uma narrativa que ao invés de progredir, se fragmenta e se confunde.

Quase todo o filme acontece durante a festa do casamento de Piotr e Zaneta, e embora a posessão de Piotr pelo dybbuk seja o carro-chefe na trama, ela se agrega a acontecimentos secundários que lhe conferem densinade e potência dramática. Uma gama de personagens repletos de trejeitos próprios é apresentada e recebe a chance de lidar com a estranheza do comportamento de Piotr – que ocorre por consequência da possessão.

Os personagens e acontecimentos secundários não existem como alívio cômico ou dramático do evento principal da possessão – eles lhe conferem amplo sentido narrativo. Demon é, muito mais do que um filme terror, um drama sobre família, memória e tradição. O que se revela – ou melhor, o que se sujere – na noite de casamento é muito mais assustador do que a aparição de uma alma penada. Com a desestabilização da festa de casamento, enxergamos através de um véu semitransparente o que há por trás das mais óbvias aparências estabelecidas naquele lugar.

Os mistérios e segredos que se perpetuam na família aparentemente mafiosa de Zaneta se misturam com a inexorabilidade da passagem do tempo, que corrói as estruturas mais basilares de outrora sem, contudo, expurgá-las por completo, e com o frenesi entorpecido de uma festa de casamento sequestrada pelo alcóol e pela morte, corpos embriagados dançando numa festa de remorso enquanto o dybbuk dá o seu grito final.

Muito mais que a posessão em si, Demon impressiona pelo rigor técnico com que se apresenta, planos bem construídos e uma decupagem sonora que potencializa ao invés de enfraquecer. Impressiona também pelo arcabouço temático que circunda sua trama principal: a memória, expressa pelo velho professor que conhecia a jovem Hana (o espírito antigo que atormenta Piotr); a família, expressa pelos parentes de Zaneta, que cerceam e manipulam a festa de casamento a fim de livrá-la de um desastre inevitável; a tradição, expressa pelo casamento em si, cujas origens não são tão claras (foi arranjado? Foi por obrigação?). Temas que se juntam e recontroem os sentidos do filme, indo além do terror genérico.

Porém, não há interesse que se mantenha aceso durante bons momentos nos quais o filme se arrasta, perdido na indefinição entre terminar bruscamente ou aparar arestas ainda não finalizadas. Embora o filme não se incomode em explicar e revelar as gêneses de seus segredos e temas, Marcin Wrona (diretor e roteirista) caminha lentamente em direção à conclusão. A impressão que fica é que, mesmo tratando-se de um filme bastante curto, Demon se beneficiaria de uma metragem ainda menor: já que sua estrutura não é padrão, com seu clímax se exercendo num sem número de fragmentos sem tanta relação (o que é excelente, diga-se), sua conclusão poderia ser ainda mais enigmática, mais rústica, a fim de que a estranheza fosse ainda mais potente e significativa.

Talvez me falte elementos contextuais suficientes para apreciar o filme mais profundamente. Trata-se de uma história bastante ligada à memória da Polônia (talvez especialmente a Polônia ocupada na Segunda Guerra) e a tradição judaica, duas coisas com as quais eu tenho zero ressonância pessoal (embora a mera articulação desses temas dentro de uma história que aparentava ser de um gênero específico de terror tenha me causado uma surpresa agradável). O diretor Marcin Wrona se suicidou pouco após a estreia do filme ano passado, no Festival de Toronto. Seu legado é curto, mas sugeria uma carreira de notório potencial. Embora esteja longe da perfeição, Demon é um filme que se constrói em boa parte através da cinematografia, ao invés duma narrativa descritiva, o que hoje em dia quer dizer muita coisa.

Comentários (1)

Felipe Ishac | quinta-feira, 02 de Junho de 2016 - 02:54

Grande crítica e um bom filme. Uma pena o diretor ter se suicidado, tinha um grande potencial.

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