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Críticas

Cineplayers

Trauma e bullying na obra-prima de Michel Franco.

9,5

Pouco conhecido no cenário cinematográfico mundial, Michel Franco acumula apenas dois longas-metragens em sua carreira, mas já surge como uma promessa de realizador com aspectos bem autorais. Em seu primeiro trabalho, Daniel & Ana (Idem, 2009), o cineasta mexicano apresentou um drama chocante que, como pano de fundo, investigava uma realidade da Américas do Sul e Central (pornografia online sem consentimento) e o comportamento de dois jovens após um transtorno de estresse pós-traumático. Em sua nova obra, Depois de Lúcia (Después de Lucía, 2012), Franco só troca o cenário pela capital mexicana, pois as temáticas retornam com equivalente intensidade, apesar de superior consistência e abrangência.

Após uma tragédia familiar, a jovem Alejandra (Tessa Ia) e o pai, Roberto (Hernán Mendoza), mudam-se do litoral do México para a capital do país, onde tentarão superar o passado e iniciar uma nova vida.  Enquanto o pai tenta se adaptar ao novo emprego, a filha mostra-se mais bem-sucedida e logo se enturma com os colegas de uma escola classe A – até que um ato impensado de Ale redunda num terrível caso de bullying (termo que aqui tem sua noção e seus parâmetros redefinidos).

Ciente do poder de seu roteiro, Michel Franco é soberbo mesmo quando opta pela economia. Exemplo disso é a direção de fotografia: embora adotem os mais variados enquadramentos, Franco e Chuy Chávez mantêm a câmera estática durante todo tempo (a exceção é o flashback de um acidente), tornando ainda mais angustiantes os planos longos e os planos-sequência. Tal desconforto é acentuado pela (ausência de) trilha sonora, restrita a sons diegéticos, assim como um admirável trabalho de preparação de elenco, que confere realismo e naturalidade aos diálogos e às intensas cenas, estreladas por jovens que em nenhum momento parecem atores (e provavelmente não eram), mas adolescentes inconsequentes de uma abastada Cidade do México, resguardados pela ineficiência da lei e pela condescendência de pais tão omissos que em nenhum momento abrem a boca. Porém, a maior sacada e prova da economia de Michel Franco vem desde o título.

A personagem-título desencadeia todos os eventos da trama sem jamais aparecer na tela ou ser, ao menos, citada nominalmente. Sua ausência está sempre presente no abatimento dos protagonistas. A traumática morte de Lucía é responsável por uma dedicação recíproca na relação pai e filha que, irônica e paradoxalmente, é responsável pelas fatídicas situações da trama. Se Roberto, por exemplo, mostra-se flexível aos deslizes de Ale, ela por sua vez preocupa-se com a vida pessoal e amorosa do pai, que exala instabilidade emocional. Então a jovem, numa tentativa suicida de não levar seus problemas pessoais ao abalado pai, fica vulnerável a todas as provações às quais é submetida, tornando compreensível e comovente a passividade e a discrição com que administra a brutalidade que sofre na escola.

Nesse sentido, vale ressaltar a incrível atuação da dupla de protagonistas. Hernán Mendoza incorpora um homem com a expressão facial e corporal de uma pessoa depressiva, mas, pelo modo contido como se porta diante da filha, é a verdadeira representação de uma bomba-relógio ambulante, que explode sempre que ausente de Ale (comportamento que faz do impactante desfecho a opção mais coerente dentro da trama). Tessa Ia surge confiante, madura, mas através da aparente força de seu semblante inócuo transborda a emoção e a vulnerabilidade de uma jovem que, no fundo, sofre pela morte da mãe e pela tristeza do pai. Uma atuação estupenda.

Contudo, a razão da excelência de Depois de Lúcia deve ser mesmo atribuída ao promissor Michel Franco. O diretor e roteirista inicia o terceiro ato com um leitmotiv que o interliga ao início do filme e estabelece, assim, o sentimento de desolação e desapego que conduz Roberto durante toda projeção, justificando assim seu trágico desfecho. Eis a conclusão brilhante que eleva o segundo longa-metragem de um cineasta à condição de obra-prima.

Comentários (9)

Reginaldo Almeida | domingo, 22 de Junho de 2014 - 17:57

Eu gostei muito desse filme. Concordo Até com a nota alta para um filme bem simples, Rodrigo. Sabe, o final salvou o filme. Não sou exatamente a favor da justiça com as próprias mãos, mas também não vou discordar de que alguém tem que pagar por tanta maldade que foi feita. Adolescentes o caramba! Eles sabem o que fazem😠

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | sábado, 02 de Agosto de 2014 - 23:44

Vi que esse filme aparecia em várias listas de melhores do ano pra assistir do cineplayers, que funciona como um roteiro quase obrigatório para mim, fui lá e assisti. Na primeira parte do filme fiquei meio decepcionado, pois pouco acontecia, de repente iniciou-se um processo de humilhação da personagem Ale que me deixou indignado com a maneira que todos no filme tratavam da questão. Resumindo, para mim o filme virou algo pessoal, muito bom, muito verdadeiro e muito inteligente, não mostra nenhuma fórmula pronta e você realmente acredita que aqueles jovenzinhos malditos estão fazendo tudo aquilo. Parabéns ao diretor, parabéns pelo desfecho, que nos deixa sem uma solução óbvia e parabéns a quem assistiu pois o filme nos mostra que devemos observar e participar efetivamente da vida de nossos filho. ALTAMENTE RECOMENDÁVEL.

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