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Críticas

Cineplayers

Inverno emocional.

9,0
Similar à forma que um menino olha pela janela, nós, espectadores, avistamos as paisagens russas cobertas com o gelo esbranquiçado. O menino olha e observa as pessoas com o anseio de quem deseja algo, de quem sente alguma falta. Ao longo da história, testemunharemos cada ausência. Somos meros contempladores. Observamos o rigoroso frio; a neve que cobre as planícies; os galhos de árvores retorcidos carentes de qualquer cor esmeralda; os lagos vitrificados que espelham o sol. E por trás da janela, do lado de dentro, o inverno emocional que tanto condiz à atmosfera invernal do lado de fora, de sentimentos reclusos, de sombras e indiferença.

O cineasta Andrey Zvyagintsev nos submete à hostilidade perpetuada pela indiferença quando nos convida a olhar de perto uma família arruinada, com um casal em constante confronto e o filho, atrás da parede, ouvindo o quão esses pais não se interessam por ele; e pior, que negam sua companhia. As lágrimas escorrem ressentidas em uma cena comovente e inclemente, certamente uma das mais marcantes do ano. Os pais estão em processo de separação, mas ainda dividem o mesmo teto. Eles tocam suas vidas com outros parceiros e se definham odiosamente quando convivem. Diante seus novos amores, revelam-se os mesmos. 

O diretor está plenamente concentrado no drama do casal e o estrutura, a partir do roteiro escrito pelo próprio em colaboração com Oleg Negin (parceiro habitual), com a situação econômica do país, com os valores morais empregados pelos seus personagens tanto na empresa onde discutem hierarquia e funções familiares, quanto na academia ou na mesa de depilação; ou na sala junto à TV, enquanto empunham seus celulares distribuindo curtidas a desconhecidos. O filme não julga as práticas, mas as exterioriza, deixando qualquer identificação e ponto de vista por parte do espectador. Que estes se virem com suas ideias e histórias. 

Quando o menino desaparece, os pais precisam, por necessidade moral e consideração imanente, se preocupar. Descobrem o desaparecimento muitas horas depois, quando alguém da escola liga questionando as faltas injustificadas da criança. Esses pais não percebem por ausência, o que exprime o quanto as ausências em toda a obra são tão naturalizadas que fazem parte do ciclo de horas que todos estão despertos. Qualquer ameaça de mancha ao caráter de cada um é o alerta, pois um filho desaparecido é motivo para que outros os questionem, acarretando consequências a imagem de suas personas. 

A trama se desenvolve nas minucias da soberba. Na delegacia, o delegado age de forma similar, apático à situação, explicando sobre o quanto é comum esses desaparecimentos, e traça paradigmas sobre um possível breve retorno voluntário, tal como geralmente acontece com adolescentes frustrados em fuga. A construção de cada personagem, junto às atuações instintivas, indica a passividade do povo frente a tudo. O outro pouco importa. Zvyagintsev esboça o caráter de seus personagens em diálogos pontuais e nas rudes ações, colocando-os à prova. 

Em determinada cena – e essa funciona como ilustração do desdém supracitado –, os pais passam por uma entrevista e são perguntados sobre hábitos, gostos e amizades do filho com vizinhos ou no colégio. Raramente conseguem dar respostas a respeito das intimidades da criança, transparecendo o abismo que havia entre eles. Não só entre eles, mas com outras figuras familiares. Distanciados, no frio, todos parecem dividir um pequeno espaço com alguém, ainda que conservem longitudes fraternais. 

Desamor é admirável em diferentes níveis. Em como usa de várias funções narrativas para contar sua história. Em como é cuidadoso tecnicamente e se apropria de cada um de seus extraordinários quadros para dizer algo, ao passo que usurpa da beleza plástica dessas imagens a fim de estabelecer um filme visualmente arrebatador. O desconforto de sua trama e as várias cenas que se delongam extravasam a sensação psicológica de seus personagens, largados à própria vaidade que os coagulam em amargurado egoísmo. 

Comentários (2)

André Luís da Silva Coutinho | quarta-feira, 10 de Janeiro de 2018 - 19:11

Um dos melhores do ano com certeza. Relevante, pesado e terrivelmente real. Uma das melhores demonstrações de que a Arte não se trata apenas de beleza estética, mas também de um impacto e de exposição da cruel realidade que precisa ser mudada. "Não se pode viver em desamor"; a frase mais comovente proferida no longa.

Reginaldo Almeida | terça-feira, 13 de Fevereiro de 2018 - 11:41

Gostei muito desse filme! Crítica ótima , valeu!

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