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Críticas

Cineplayers

As reciclagens de Eli Roth.

5,0
Inspirado por um assalto que sofreu, o escritor Brian Garfield não imaginou o tamanho do que criava quando escreveu Desejo de Matar (1972), história onde o pacato protagonista Paul Benjamin via sua família padecer nas mãos de criminosos e respondia ao trauma tornando-se um vigilante. Dois anos depois, Paul Benjamin iria para o cinema e viraria Paul Kersey, sendo vivido por Charles Bronson no filme homônimo dirigido por Michael Winner e produzido por Dino De Laurentiis.

O resto, como dizem, é história: mais quatro sequências foram realizadas pela Cannon Films, célebres produtores de filmes de baixo orçamento como Falcão - O Campeão dos Campeões, Braddock - O Super Comando e Ninja - A Máquina Assassina. Kersey se tornou talvez o mais icônico justiceiro do cinema, até mais do que os icônicos policiais “Dirty” Harry Callahan da série Perseguidor Implacável e o Marion Cobretti de Cobra. Não à toa ganhou uma refilmagem nos tempos em que o cinema, vendo seu terreno ser perdido para outras mídias como as séries de streaming, investe cada vez menos em conteúdo original e mais e mais em adaptações, franquias e refilmagens como forma de garantir público.

Ainda que se trate da primeira vez que refilme uma obra oficialmente, a carreira de Eli Roth sempre foi pautada pelo que convencionou-se a chamar de “rip-off” dos grandes filões do passado: já filmou Canibais, ao estilo do ciclo italiano de filmes sobre selvagens comedores de homens e inclusive destacou-se no início da sua carreira com o torture porn O Albergue. E como sempre foi o caso, tudo que Eli Roth aborda de perturbador, interessante ou mesmo chamativo não demora para ir ralo abaixo.

O roteiro de Joe Carnahan (Esquadrão Classe A, A Perseguição) pode até enganar em um primeiro momento o espectador que não conhece a série Desejo de Matar ao passar a impressão de que trata-se de uma história ao menos interessante em um primeiro momento: após perder esposa e ter a filha colocada em coma, o médico Paul Kersey passa a flertar com a ideia de vigilantismo até comprar uma arma para matar bandidos e ir atrás dos malfeitores que lhe prejudicaram. Mas basta ver ou ler qualquer sinopse para entender que é mais um filme da série que se resume apenas a isso, com Carnahan acertando onde copia as ideias originais do livro e do primeiro filme e patinando feio sempre que tenta alçar o próprio voo. 

Roth e Carnahan ensaiam falar sério sobre um tema pesado, mas não querem investir tanto. O filme de Bronson, ao menos o primeiro, mostrava um homem que saía em uma onda de matança contra bandidos sem nunca encontrar os verdadeiros culpados. Já a trama revanchista posteriormente introduzida aqui lembra mais a sequência Desejo de Matar 2, onde Kersey realmente descobria e executa os que desgraçaram a sua vida: mas também é onde o filme perde o interesse e vira só mais um conto de fadas dos partidários do assunto. 

E sim, o filme pode ser acusado de investir pesado em ser o “sonho molhado” da justiça com as próprias mãos. Ao contrário do filme original, a vingança é a redenção, não o motivo de loucura do protagonista que o torna tão violento quanto os bandidos. Podemos contar também com uma sorte tremenda: o filme faz questão de evidenciar a pouca intimidade do médico com as armas, mas também lhe dá uma “armadura de roteiro” e tanto, com o personagem escapando de situações, recebendo ajudas providenciais da sorte e demonstrando uma inteligência bélica surpreendente. Por mais que o roteiro aproveite com certa inteligência a troca de profissão (arquiteto no original, médico aqui), não dá para não dizer que o conceito perturbador do filme original não tenha dado espaço a algo mais palatável.

O Desejo de Matar de Eli Roth apresenta a sua velha combinação de terror gore com comédia slapstick, ou pastelão; para cada ferimento exposto, há um tombo ou pancada engraçada, além dos gracejos vindo da dupla de policiais que acompanha de perto o caso de Kersey (feitos por Dean Norris e Kimberly Elise). Intervenções inseridas no meio do filme com programas de rádio virtuais demonstrando como um coro o efeito de Paul Kersey sob a população também são carregados de referências a memes e com ares positivistas sobre o assunto. É uma viagem moral e catártica com uma retórica justificável e carregada, onde o gosto adquirido do protagonista por matar nunca o rebaixa, apenas o eleva. É uma história de vingança de tom satisfatório, fechado, que se responde. A violência gráfica nunca desconcerta em si - apenas serve como efeito de mais resolução.

Normalmente deve-se evitar comprar refilmagens e seus originais com muita frequência, mas fica difícil quando praticamente tudo o que o filme consegue entregar de bom já foi visto antes. As cruzadas anônimas pela cidade urbana, a transição calculada de homem dócil para pistoleiro com sangue nos olhos, o senso de justiça particular; características partilhadas pelos dois filmes. Agora os tiroteios dignos de filmes de ação, as gags cômicas e a violência elevada ao máximo são puro Eli Roth, que um dia agarrou um tipo de filme que mescla Aniversário Macabro com Porkys ou Holocausto Canibal com O Último Americano Virgem e dali nunca mais saiu; seus filmes ainda são rigorosamente a mesma coisa, sem variações, pretensamente sério até o momento onde avacalha de vez e esquece qualquer projeto de cinema para apostar no fogo médio conformista. 

Apadrinhado por Tarantino, é incrível como o diretor só poucas vezes esboçou o distanciamento crítico/cínico que Quentin adotava em seus filmes para imprimir o próprio estilo. Roth pelo contrário, cai em todas as armadilhas do estilo que adota e produz mais versões baratas dos filões que quer exaltar. Canibais era exatamente igual a todos os filmes de Ruggero Deodato e Umberto Lenzi, com um pouco mais de humor à lá Jackass, Bata Antes de Entrar propunha um jogo cênico interessante antes de cair na grosseria pura e simples e Duro de Matar, não sendo diferente, chega como mais um derivativo não só do Desejo de Matar original mas de todos os filmes de vigilantismo inspirados pelo próprio.

Roth acerta em alguns pontos, como a montagem splitscreen que mostra a sua transição de médico para pistoleiro, ainda que pareça um tanto juvenil “inflamar” a cena ao som de Back in Black, do AC/DC, na tentativa de erguer o vigilantismo como algo descolado, e na escalação de Bruce Willis, que como já provou em filmes como Duro de Matar e Corpo Fechado, sabe interpretar com facilidade um tipo estoico porém vulnerável, determinado mas perturbado. O tipo de papel que envelheceu fazendo e ainda aqui esteja no ponto morno, “feijão com arroz” mesmo, demonstra um mínimo de fé cênica ao interpretar choque e raiva em um personagem sisudo.

O Desejo de Matar 2018 não é ofensivo, mas é pálido em comparação com tantos outros filmes sobre o tema, como o ultraviolento O Exterminador, o controverso e clássico Taxi Driver, o sombrio Harry Brown e o divertidíssimo Kick Ass - Quebrando Tudo; aliás, mesmo comparando com antecessores, jamais sabe abordar com propriedade o psicológico arrasado do personagem e suas decisões duvidáveis como no original ou, quando parte para a trama de vingança pura e descerebrada, consegue ser tão um tom acima de tão escalafobético quanto o era Desejo de Matar 3

Isso em grande parte é culpa de um diretor que nada traz de novo e aposta no charme de um nome ou de um filão para atrair quem quer conhecer, mas tem preguiça de procurar. Pena que o que vão receber por aqui é mais um Desejo de Matar com o açúcar trocado por adoçante. Um filme de potencial desperdiçado - não sendo nem a primeira e provavelmente não sendo a última vez que se pode afirmar isso a respeito de Eli Roth.

Comentários (2)

Khalil N. | segunda-feira, 23 de Abril de 2018 - 01:40

Que crítica arretada! Valeu, Bernardo.

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