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Críticas

Cineplayers

Intenso, bem roteirizado e coeso. Filme é bela transposição de romance para o cinema.

8,5

Recém-terminada a projeção, pensei com meus botões: se eu fosse o Ian McEwan, teria aprovado tranquilamente essa adaptação do meu romance (“Reparação” foi lançado no Brasil pela Cia. Das Letras). Logo em seguida, nos letreiros, leio o nome dele, como produtor executivo do filme. Foi a resposta de que eu precisava; ele de fato aprovou-a. E muito provavelmente por ter acompanhado de perto, como produtor, todo o processo de feitura do longa. Afinal, mais fácil é adaptar para o cinema livros de autores medianos ou que não tiveram muita repercussão de público e crítica – vide a infinidade de versões cinematográficas das histórias de Stephen King. Já uma ficção bem escrita e coesa é muito mais difícil de funcionar nas telas com a mesma intensidade de qualidade com que repercute em sua forma original. Portanto, o trabalho enfrentado pela equipe de “Desejo e Reparação” não era nada desprezível; muito pelo contrário.

Todavia, sob a batuta do próprio escritor do romance, as chances de tudo funcionar coordenadamente seriam mais altas. Foi o que aconteceu. A escolha do roteirista recaiu sobre Christopher Hampton, bem-sucedido na transplantação de um clássico da literatura mundial para a película, a também clássica versão de “Ligações Perigosas” (1988), dirigida por Stephen Frears. A direção ficou a cargo de Joe Wright, içado ao grande público e à aprovação da crítica com “Orgulho e Preconceito” (2005), adaptação do mesmo título da escritora britânica Jane Austen.

McEwan soube se cercar de profissionais experientes em passar romances bem conceituados para a linguagem cinematográfica. O resultado foi um filme em pé de igualdade em termos de lirismo e contundência com a novela por ele redigida.

A Transposição

“Desejo e Reparação” trata das ações humanas e suas inter-relações; como o ato de um indivíduo dificilmente é isolado e sem repercussões na vida dos demais. Estamos na Inglaterra de 1935, numa rica propriedade rural de uma família abastada. Nela vivem a matriarca e suas duas filhas – a voluntariosa Cecilia (Keira Knightely), a mais velha, e a jovem Briony (Saoirse Ronan), de 13 anos. Também é o lar de Robbie Turner (James McAvoy), filho da governanta, mas educado em Cambridge às expensas do falecido patrão. Cecília e Robbie têm uma forte conexão, sem saberem, no entanto, se são correspondidos um pelo outro. Briony é a única testemunha da atração entre os dois, daquilo que pode rolar entre eles. E será justamente uma iniciativa dela, uma atitude consciente, a definir o futuro dos dois amantes.

Anos mais tarde, numa segunda parte do longa, será a vez da II Grande Guerra a interferir na vida do casal, um acontecimento maior que não poderia ser evitado pelos dois, quase um acaso.

A forma de filmar tanto a interferência de Briony quanto a da guerra na relação de Cecilia e Robbie é o que faz toda a diferença em “Desejo e Reparação”, o que torna o filme uma adaptação de qualidade do livro de McEwan. O trabalho de equipe envolvido conseguiu utilizar recursos eminentemente cinematográficos para representar cada uma dessas ações decisivas.

Na primeira porção do filme, há uma clara distinção entre as cenas testemunhadas pela pequena Briony e aquelas que ocorrem entre o casal Cecilia e Robbie. As seqüências repetem-se de perspectivas distintas, para frisar o olhar da observadora e então diferenciá-lo da experiência vivenciada de fato por seus protagonistas. Assim, o espectador não apenas elabora como penetra nas razões da adolescente para ter tomado a atitude que define os rumos da trama.

Já no que se refere aos efeitos da II Guerra Mundial sobre a relação de Cecilia e Robbie, numa segunda etapa, o trecho mais importante provavelmente seja o longo plano-seqüência a representar a retirada das tropas aliadas da costa norte da França em 1940. Análogo a um quadro renascentista, desses imensos que retratam multidões e, simultaneamente, pequenas cenas detalhadas, a câmera passeia por uma praia repleta de soldados e destroços de guerra, captando várias ações consecutivas que descrevem, feito um “inferno de Dante”, o desespero e a falta de perspectiva dos soldados. Robbie está entre eles.

Livre-Arbítrio e Acaso

Existe um aforismo do teólogo norte-americano Reinhold Niebuhr que diz: “Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que eu posso, e a sabedoria para saber a diferença”. Geralmente associamos as chamadas “coisas que não posso mudar” a fatos do acaso, externos a ação de qualquer ser humano. Por exemplo, um terremoto ou um incêndio provocado por um raio que pode acabar por matar um amigo ou ente querido. O que custamos a aceitar é que a maioria desses fatos incontroláveis, externos a nós, é provocada pela ação de outras pessoas. Se essas ações poderiam ou não ser evitadas, aí entraria o acaso, pois como poderíamos saber de antemão, se só tomamos consciência da inevitabilidade de algo depois do ocorrido. 

“Desejo e Reparação” começa com o ponto final de Briony em sua primeira obra literária, uma peça de teatro. Eufórica, ela corre para mostrá-la a mãe. Cenas depois, conversando com a irmã Cecilia, as duas deitadas na grama do jardim, sob o sol, com Robbie em segundo plano, Briony confessa: “eu deveria ter escrito um romance; as peças são ruins porque a obra, para se realizar, depende da ação dos outros”. Palavras premonitórias, que amarram a narrativa do começo ao fim...

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