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Desencanto

(Brief Encounter, 1945)
8,5
Média
201 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Talvez o melhor romance proibido que o cinema já viu. Chega muito perto da perfeição.

9,0

David Lean, o diretor de grandes épicos, filmou com dificuldades, em pleno auge da II Guerra Mundial, na Inglaterra, este pequeno enorme romance, baseado em uma curta peça teatral. Poucas vezes algum diretor conseguiu ser tão sensível e genuíno ao falar de paixão. Desencanto é um trabalho praticamente perfeito sobre o tema e, já que o mundo evoluiu de maneira desconexa de lá para cá e os romances reais não são mais tão românticos, o filme pode ser considerado facilmente um dos melhores que o seu gênero já viu até hoje.

Desencanto remete a tempos onde a traição conjugal era considerada algo sujo e sórdido, muito mais do que hoje em dia. Ao mesmo tempo em que os encontros furtivos de Laura e Alec eram excitantes e divertidos, a sensação ruim de desonestidade fazia-se transparecer sempre em seus rostos, principalmente em Laura, interpretada por uma mui bela (porém não artificialmente, como seria em um romance moderno) Célia Johnson, responsável por uma interpretação totalmente humana e sensível. Ela narra a história em flashback, e é a peça principal do casal – sobre Alec (um desconhecido Trevor Howard à época, depois participou de O Terceiro Homem) conhecemos muito pouco além do fato de ele ser médico. Lean preferiu priorizar a perspectiva feminina.
 
O que mais encanta é o desenvolvimento do romance entre o casal. Ele é absolutamente crível, perfeito. A partir de um encontro totalmente casual surge um lampejo; uma primeira coincidência de um reencontro desperta emoções a serem futuramente descobertas; uma primeira conversa informal adiciona interesse mútuo; a primeira sugestão de um passeio (como amigos) desperta felicidade. A curva dos acontecimentos é perfeita. Claro, para frente presenciaremos a culpa, o arrependimento, o sofrimento. Como um bom amor proibido. E nenhuma dessas fases soa forçada ou fora do lugar. O roteiro conseguiu, dessa forma e dentro de seu gênero, atingir um nível de perfeição poucas vezes visto no cinema. Assim sendo, não é exagero considerar este um dos melhores romances proibidos do cinema.

Hoje em dia as histórias de amor não são assim – e se fossem seriam consideradas demagogas, ultrapassadas. Não há conotação sexual explícita em diálogo ou ato algum de qualquer um dos personagens. Prender o espectador sem sexo é algo que roteiristas de hoje em dia simplesmente não conseguem mais fazer. Uma das causas é o fato de o mundo ter perdido, há décadas, sua inocência. A luz monótona da plataforma de um trem não é mais algo romântico, e sim é um refúgio para assaltantes. As mulheres mudaram também. A submissão está fora de moda – elas “não precisam” mais dos homens, e sim os querem; não precisam mais ser amadas, e sim amar. Exceções são poucas.

Deste, o filme que mais se aproxima hoje seria Antes do Amanhecer – os diálogos, as intenções dos personagens, a suavidade dos cenários. Não é à toa que Antes do Amanhecer (e, em menor grau, sua seqüência Antes do Pôr-do-Sol) são filmes considerados romances da “velha-guarda”. Só assim para serem bem aceitos. Aliás, falando em cenários, os cenários de Desencanto são personagens à parte. O filme se passa em sua maioria em uma estação de trem, belissimamente fotografada, um clima perfeito para um romance casual. À medida que evolui, outros cenários nos são apresentados, como a casa de um amigo de Alec, a casa de Laura, e paisagens ao ar-livre. Assim o filme consegue evoluir sua linguagem teatral ao trazer mais variedade. Ainda assim, os momentos vividos dentro da estação são os melhores.

A direção de Lean é absolutamente precisa. Nunca se impõe, contando a história suavemente, sem exageros, deixando os personagens crescerem aos poucos. Apenas uma cena perto do final do filme traz um toque diferenciado, fora do óbvio – é quando uma das personagens toma uma ação súbita, e a câmera vira diagonalmente, mostrando uma mente fora de si. A narração em off de Laura tem um tom melancólico preciso, gostoso de se ouvir. Combina com os cenários e a história do casal.

David Lean filmou Desencanto antes de outros filmes seus que até hoje também são inesquecíveis. Filmou em meio a bombas e um clima depressivo de guerra. Conseguiu criar, dessa situação, uma verdadeira, legítima obra-prima, a partir de uma situação comum, prova da versatilidade do diretor desde cedo em sua carreira. É detestável apelar para clichês, mas acredito que, na maioria dos casos, o simples deve prevalecer sobre o complexo, então só posso dizer que, neste caso, provavelmente mais do que em nenhum outro, não se fazem mais filmes como este. Desencanto é maravilhoso!

Comentários (1)

Matheus Bezerra de Lima | quinta-feira, 01 de Março de 2018 - 18:53

Realmente, o mundo infelizmente perdeu essa inocência. Já vi gente criticar esse filme por achá-lo "quadrado" ou que faltou mais sensualidade. As pessoas hoje em dia foram tão acostumadas com essas coisas que agem dessa forma quando vêem esse filme.

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