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Críticas

Cineplayers

Seres incontroláveis.

8,5
Ronit é apresentada num bloco de cenas iniciais como uma mulher à beira da exasperação. Fumante, café a postos, transando indiscriminadamente em lugar público, sufocada. Ela precisa voltar pra casa de onde saiu faz muitos anos, e que agora parece um deserto distante. Seu pai é um rabino respeitado de uma comunidade judia na Inglaterra e acaba de falecer, essa é o motivo do seu retorno. As coisas não são como antes e Ronit é tratada com aridez e desconfiança, inclusive pelos seus melhores amigos de infância, Dovid e Esti. Ele é a escolha natural para suceder o pai de Ronit, ela perdeu o ímpeto vivaz que ainda reside em sua amiga. Eles se casaram e esse quadro familiar inusitado desnorteia Ronit e traz à tona sua relação com ambos na juventude e os motivos que levaram ao seu afastamento dos seus.

Sebastian Lelio agora tem uma Carreira, após o Oscar. Ainda no terceiro longa, já é um nome forte na indústria, mas antes disso tudo acontecer já tinha rodado esse primeiro longa falado em inglês e que é uma grande surpresa. Seu filme anterior tem muitos admiradores, toca em temas do momento, ganhou vários troféus mundo afora, mas é nesse longa que ele parece encontrar uma unidade em sua ainda curta filmografia. Seus dois longas anteriores (Gloria e Uma Mulher Fantástica) tecem perfis sobre personagens completamente diferentes, cuja comunicação não pareceria tão clara à primeira vista. A chegada desse novo longa abre algumas portas de acesso a essa cinematografia, agora sim com uma visão mais direta sobre si.

Essas personagens almejam uma liberdade que a elas é cerceada, ou pelo menos questionada. Gloria é uma mulher à beira da terceira idade, cuja vida pulsa independente do que a sociedade pensa para alguém de sua idade. Marina é uma jovem mulher trans que não consegue viver seu estado de luto por forças que a arremessam numa espiral de homofobia constante. Chegamos então a Ronit, Esti e Dovid, um trio de amigos de infância preso a convenções de uma comunidade judaica que não apenas os cerceia, mas também os molda como a seus antepassados. Durante o longa veremos esse modelo de sociedade ser não somente posto à prova como também questionado, o novo em contraposição ao estabelecido, e esse desejo de mudança e evolução vem de forma declarada e velada, aos poucos todos se encontrando numa curva comum.

Tecnicamente é um filme também de complexa elevação ao anterior, que tinha uma lógica da exacerbação visual, ainda que acertada. Lelio chuta na sutileza parcial, mas cuja sofisticação fica clara já na primeira sequência, a que vitima o pai de Ronit. Durante seu discurso final, onde ele aponta a premissa libertária sobre o qual o filme irá transcorrer, o diretor já trafega com as câmeras como um balé de imagens. Várias passagens explicitam a evolução imagética do chileno, como a sequência da transição de rabinos onde Dovid prepara seu discurso e é observado através de um vidro que o deforma, além de todas as tomadas que encaram Ronit tendo a possibilidade de tocar seu próprio cabelo, ato que não poderia ser feito pelas outras judias, que usam perucas que as disfarça. O filme também marca uma passagem fora da comunidade judaica durante um passeio das duas amigas, onde finalmente vemos a luz do sol e o filme enfim se ilumina, deixando claro o aspecto soturno da vida naquela sociedade.

Além de todo esse acerto imagético, não haveria acerto completo se o trio protagonista não correspondesse à altura a essa entrega de seu autor. E é difícil chegar à conclusão de quem está melhor dos três. Rachel Weisz tem de fato sua melhor performance da década, muito centrada, muito controlada, muito segura de si e na maior parte do tempo com textos correspondentes a seu desempenho. Rachel McAdams também está acima da média e num crescendo como atriz, adquirindo sobriedade e introspecção quando necessário, até começar a se despir de uma couraça castradora que lhe foi imposta. E o subestimado Alessandro Nivola mais uma vez arrebenta com um personagem muito difícil, de nuances enraizadas e cheio de contradições, que o ator explode na tela cena a cena em momentos arrebatadores. Lelio mais uma vez demonstra também exímio domínio de elenco, e o filme termina quase ileso, com poucas questões a serem cobradas, em momentos expositivos aqui e ali. 

No geral, trata-se de uma belíssima visão sobre o difícil ato de libertação de pessoas enclausuradas, por querer ou sem querer, e cuja absorção de seus próprios desejos e atitudes será cobrado até por si mesmos. Lelio filma essa alegoria como se aprumando enfim seu status de carreira, e colocando seu nome em lugar elevado, agora com méritos reais e absolutos. 

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