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Críticas

Cineplayers

Descartável e sem paixão, filme comprova a decadência de Sydney Pollack, autor de grandes obras nos anos 60 e 70.

4,0

Certa vez li uma reportagem sobre a indústria cinematográfica em que se sustentava a tese que a carreira da maioria dos cineastas atravessava um período de grande criatividade, dentro do qual eles realizavam seus melhores filmes. O artigo defendia que este prazo variava de diretor para diretor, mas que, em média, durava 10 anos. Passada a fase de alta inspiração, o profissional entrava numa irreversível curva descendente, filmando obras sempre abaixo da qualidade antigamente alcançada. Os motivos que justificavam a saída do cineasta do primeiro escalão, eram quase sempre a pressão que o mercado exercia sobre o filme, a necessidade de sempre desempenhar um bom papel na bilheteria, os egoismos e hipocrisias do pessoal envolvido com a produção, os prazos e orçamentos apertados. O diretor sofria de todos os lados, passando a maior parte do tempo resolvendo problemas, como que um administrador de empresas. O texto da reportagem entendia que o profissional conseguia suportar esta situação, mantendo o nível de sua obra, por no máximo 10 anos, após o que, a queda era inevitável. Ele podia até permanecer na indústria, mas os roteiros que lhe seriam apresentados não possuíam o mesmo quilate do passado.

Ao ler este artigo de jornal, há alguns anos, a primeira pessoa que me veio à mente, foi Francis Ford Coppola, cujos últimos filmes (Jack e O Homem que Fazia Chover) não fazem jus às suas incontestáveis obras-primas da década de 70. Depois de algum tempo, fui obrigado a incluir nesta lista – para minha tristeza – Brian de Palma, que aparentemente não tem mais muita paciência de filmar. Missão: Impossível e Olhos de Serpente, apesar de possuírem inegáveis qualidades (a seqüência de Tom Cruise invadindo o compartimento secreto para copiar os disquetes, no primeiro, e os 20 minutos iniciais, sem cortes, no segundo) são apenas sombras de seus grandes filmes dos anos 80. O patético Femme Fatale só colocou a pá de cal que faltava na carreira do diretor. Outro que praticamente pediu para se incorporar a este rol foi Woody Allen, que não acerta nada desde Descontruindo Harry, lançado há quase uma década. Após assistir a este Destinos Cruzados, acabo de anexar uma quarta figura ao time de cineastas que ultrapassaram seus 10 anos de glória: Sydney Pollack.

Destinos Cruzados talvez seja seu filme mais fraco. Não que fosse lá muito fã de seus últimos trabalhos. Havana (1990) era uma cópia nada sutil da fórmula de Casablanca. A Firma foi um dos maiores sucessos de 1993 por causa exclusivamente do astro Tom Cruise, enquanto que Sabrina (1995) era uma desrespeitosa refilmagem do intocável clássico de Billy Wilder. Sem dúvida, obras muito aquém do que se poderia esperar do diretor de Esta Mulher é Proibida (1967), A Noite dos Desesperados (1969 – talvez ainda seu melhor filme); Mais Forte que a Vingança (1972 – uma espécie de pré-Dança com Lobos) e Tootsie (1982 – eleita pelo AFI a segunda melhor comédia americana de todos os tempos). Mas Destinos Cruzados superou minhas expectativas, no mal sentido da expressão. Pollack parece sem vontade de filmar, faz as escolhas erradas (a começar pela própria estória, que lhe dá pouca chance de desenvolver alguma coisa), dirige mal seus atores, não consegue obter o necessário envolvimento entre os personagens principais que justifiquem uma história de amor, prolonga demais o filme etc. Pollack encerra sua filmografia da década de 90 com apenas quatro obras, cada uma representando um passo atrás em relação a anterior.

Destinos Cruzados conta a história de duas pessoas, cada qual com sua vida mais ou menos encaminhada, bem casados com seus respectivos parceiros, e estabelecidos na parte profissional. De um lado Dutch Van Den Broeck (Harrison Ford), um policial da corregedoria de Washington D. C., e de outro Kay Chandler (Kristin Scott Thomas), uma congressista americana em processo de reeleição. O destino destes personagens se cruza quando seus cônjuges morrem num acidente de avião, no qual ambos viajavam juntos. Após uma breve investigação, Dutch descobre que sua mulher tinha um caso com o marido de Kay, levando-o a procurar a viúva em busca de algumas respostas (o que não significa dizer que ele já soubesse as perguntas). Em princípio, ele quer saber se Kay já tinha conhecimento do envolvimento adúltero de seu marido ou, quem sabe, alguma explicação do motivo da traição. Tomado de surpresa com os acontecimentos, Dutch não consegue definir ao certo em seu espírito se está mais chocado com a morte de sua mulher ou com sua infidelidade. Ele não sabe se sente saudade ou raiva, tristeza ou indignação. Kay, por sua vez, parece se conformar com a perda do esposo, preferindo esconder de si mesma o fato que ele mantinha diversas amantes paralelas. Sua preocupação é não revelar à filha este lado negro do pai.

Resumido assim o enredo, imagina-se que estas pessoas vão unir forças para tentar, em conjunto, superar o trauma do acidente. Neste sentido, a história se aproximaria de um filme que gosto muito mas infelizmente pouco lembrado, dirigido por Peter Weir, chamado Sem Medo de Viver (1993) no qual o personagem de Jeff Bridges busca uma espécie de redenção em Rosie Perez, ambos sobreviventes de um desastre aéreo. Mas não é bem assim. Dutch procura Kay para obter informações sobre o envolvimento de seus parceiros. No curso das discussões, eles desenvolvem um sentimento amoroso e iniciam o romance. Nada mais inverossímil. Ambos tinham acabado de perder as pessoas mais próximas do seu convívio. Soa no mínimo estranho que, logo depois de um evento tão trágico, eles estivessem abertos para um novo relacionamento. Ainda mais se consideramos as circunstâncias em que se conheceram, e o caso adúltero em torno de seus respectivos cônjuges. Não é a toa que os primeiros encontros dos personagens não é amistoso, como que se estivessem transferindo para o outro a culpa da infidelidade. A passagem desta animosidade inicial para a construção de um sentimento é feita de forma abruta, sem respeitar a curva dramática exigida por qualquer curso básico de roteiro. Por esta razão, torna-se ridícula a cena em que os dois se beijam pela primeira vez, dentro de um carro. Ao invés de amor e carinho, eles parecem estar brigando um com o outro, numa luta de vale tudo.

Apesar de todos estes inconvenientes, o roteiro insiste no romance dos protagonistas. Com isso cai numa armadilha criada por ele próprio. Como fica evidente que o casal não se gosta, não se tem assunto para discutir. Logo, para tentar atrair a atenção do público, inseriu-se no personagem de Dutch a obsessão em encontrar um motivo para que sua mulher lhe tenha sido infiel. Convenhamos que a esposa do amante é a pessoa menos indicada para tratar deste assunto. Em busca de novos elementos da traição, ele viaja até Miami, indaga às colegas de trabalho dela sobre seu cotidiano, amigos e compromissos, até descobrir o exato local onde o adultério era consumado. O espectador fica na expectativa de que algo novo vai surgir, que aquela investigação revelará fatos inéditos que interfiram no desfecho da história. Em vão. As descobertas de Dutch não caminham muito além do que já se imaginava desde o início.

O roteiro erra em pontos chaves, dedicando diversas cenas para a vida profissional dos personagens. Acompanhamos a caça de Dutch a um bandido das ruas, que estaria envolvido em uma série de crimes da região. Ao mesmo tempo, Kay não deixa a campanha ao senado de lado, visitando diversas cidades (tudo fica sugerido nas várias seqüências de Thomas em aeroportos, dando a entender que está embarcando ou aterrissando de algum vôo) e participando de festas para levantamento de fundos. Eu esperava que estas tramas paralelas tivessem alguma função no enredo principal. Ou que elas explicassem as ações futuras dos personagens. Não era possível que o roteiro se preocupasse em fornecer tantos dados adicionais sobre o casal para não aproveitá-los em certo momento da fita. Novamente estava enganado. Ao final, elas são esquecidas, o que fez concluir que se as profissões de Dutch e de Kay fossem outras nada se alteraria.

O roteiro se esquece de desenvolver até mesmo as subtramas propostas ao longo da história, como quando a amiga de Kay (uma desperdiçada Bonnie Hunt) confessa, num restaurante, que tivera um caso com seu marido. Kay fica com cara estupefata, manda que ela pague a conta e sai sem dar muita satisfação. O argumento é esquecido e, se não me falha a memória, a personagem da amiga nem mais aparece no filme.

As interpretações seguem o ritmo do filme. Frias e indecisas. Harrison Ford está com um semblante impávido, sem reações, feito de pedra. Parece que sabe que seu personagem não tem muita coerência e que toda aquela estrutura montada em torno do filme é falsa. Limita-se a pronunciar suas falas, sem qualquer expressão, seja ela de raiva ou alegria. Thomas, por outro lado, é uma mulher bonita e charmosa, mesmo quando o personagem não lhe favorece. Mas creio que ela não acertou o tom exato entre a indignação pela infidelidade do marido e a tristeza pela sua morte. Ao longo do filme, ela transmite uma cara meio abobada (em especial na cena em que ela vai de carro até a fazenda de Ford e diz a ele que está perdida), que não sabe muito o que está se passando ao seu redor (o que no mínimo é difícil de aceitar para uma política profissional).

E nem se cogite de qualquer química entre o casal. O par central parece se beijar mais por determinação do roteiro, do que por algum gesto voluntarioso. Não há a menor paixão, o menor tesão nas cenas de sexo, o que contribui ainda mais para o distanciamento do público.

O roteiro é baseado num romance de Warren Adler. Desconheço o livro, e por isso não posso afirmar se as motivações dos personagens centrais são tão sem sentido como as mostradas pelo filme, e se as tramas paralelas influenciam de alguma forma o desenvolvimento da história de fundo. É certo, porém, que a adaptação, a cargo de Kurt Luedtke, colaborador habitual de Sydney Pollack e vencedor do Oscar por Entre Dois Amores, é repleta de furos e diálogos infantis (“Só conseguia pensar em sua boca”; "Onde será que eles lavavam suas roupas?”), criando algumas piadas involuntárias, e comprometendo seriamente o trabalho final.

Talvez Sydney Pollack esteja querendo investir na carreira de ator. Nos últimos anos, ele tem aparecido constantemente em papéis dramáticos, revelando um inesperado talento. Foi assim no ótimo Maridos e Esposas, de Woody Allen, no qual representa um dos personagens fundamentais; A Qualquer Preço, de Steven Zaillian; Fora de Controle, de Roger Mitchell; De Olhos Bem Fechados, último trabalho de Stanley Kubrick (nestes últimos três, em participações menores). Neste Destinos Cruzados ele se reserva o papel de coordenador da campanha da reeleição de Kay. Apesar de ser um pessoa importante dentro da trama, o roteiro lhe oferece poucas falas, nas quais ele sempre demonstra uma incrível naturalidade de expressão e movimentos. Pode-se dizer até que ele está mais eficiente que Thomas e Ford.

Não faria mal algum se Pollack empregasse toda esta competência na direção, retomando a qualidade de seus projetos anteriores e que o fizeram um dos diretores mais importantes do cinema americano no passado recente. Espero, sinceramente, que seus 10 anos de inspiração e criatividade ainda não tenham passado. A contar pelo seu mais recente trabalho, o insosso A Intérprete, parece que este meu desejo não será atendido.

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