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Críticas

Cineplayers

Entre (guerras) mundos.

7,5
A guerra civil assola o Sri Lanka e arruína vidas. Um soldado que perdera toda a família une-se a uma mulher e a uma garota a fim de simular uma família e fugir para a França, atrás de asilamento. Essa é a nova história do cineasta Jacques Audiard, que baseia-se numa jornada progressiva de uma família devastada num país desconhecido. A língua e a cultura são desafios cotidianos. Sobre os olhos deturpados de outros, encontram algum conforto num desconfortável cenário de violência, numa lógica de danos reduzidos. Além de tudo isso, me parece que Dheepan - O Refúgio é, em seu íntimo, uma singela história de amor e altruísmo.

Me fez lembrar o último filme de seu realizador, o romântico dramático Ferrugem e Osso (De Rouille et d'os, 2012), devido à completude descoberta por estranhos desconhecidos através de uma intersecção sentimental e emocional. Perceba que ambos os filmes trazem mutilações: no drama com Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts, uma mutilação física; aqui, uma mutilação social. Ambas impulsionaram mudanças e readequações, sem nunca cair na risível convenção de soar como lição ao espectador. É bem mais como um empurrão, a racionalização da desventura projetada.

Sobre um filme de gênero, alinha-se um drama familiar. Vai além da imigração, vai da história por trás de cada um de seus imigrantes. A família de Dheepan vai morar em um bairro violento de Paris. Nesse universo nuclear abarrotado de imigrantes, diferenças culturais coexistem demarcando desafetos. Baseado no direcionamento de seus personagens, vi um pouco do que havia visto em A Pequena Jerusalém (La Petite Jérusalem, 2005) – esse longa traz imigrantes com diferentes religiões dividindo espaço num subúrbio da capital francesa. A mudança de local alterna contextos e guerras. Há uma outra guerra sendo conflitada ali. Audiard, ciente disso, absorve com a câmera ambas definindo diferenças. Conseguimos identificá-las e compará-las.

A abordagem de Audiard não me parece visar unicamente a compreensão da expectativa por mudanças, baseada na vivência traumática de um passado recente de seus personagens. Os diálogos bem trabalhados levam a uma espécie de encruzilhada pessoal sobre amargura, algo visível nos comportamentos. É como se a adaptação de cada um deles no cenário diferente significasse uma reinterpretação da existência, o que implicaria numa nova concepção do filme, mais de ordem filosófica, a qual não cabe discutir nesse texto. Assim, não se trata somente de um filme de imigração, mas de solidão e, sobretudo, de abandono.

A um passo do melodrama, a obra é contida e bem sustentada. Reconhecemos o peso dos personagens e admiramos as interpretações contidas e operativas. Nenhum ator está a cima do outro. A estrutura do roteiro poderia facilmente pender sobre a emoção fácil, fazendo do progresso familiar um símbolo de superação ingênuo. É a precisão da situação filmada que chama a atenção, sua coerência dramática. A direção é o que torna o filme diferenciado, esquivando-se de didatismos. Eis um exemplo do quão um diretor é capaz de fazer diferença.

Frente ao que vemos diariamente na mídia, poderia julgar o contexto atual para exaltar a relevância do filme, já que fora lançado em uma época bastante apropriada, devido aos conflitos aparentemente intermináveis no oriente médio. A arte conta a história de seu tempo. Em 2015, dentro do cinema francês particularmente, Dheepan - O Refúgio não foi o único a tratar de imigração. Samba (idem, 2014) rodou pelos cinemas trazendo o assunto através de uma leitura mais amistosa, digamos assim. É possível fazer uma lista de filmes motivados pelo tema.

Jacques Audiard, reconhecidamente como um dos nomes mais atraentes do cinema na França, consagrou-se definitivamente levando a Palma de Ouro nesse ano. O homem já vem namorando o festival de Cannes há algum tempo com o impetuoso O Profeta (Un Prophète, 2009), tendo conquistado o prêmio do Júri; e com Ferrugem e Osso. Experimentemos, então, um pouco da jornada da família de Dheepan – é oportuno frisar a palavra família nessa sentença – sobrevivendo além da malevolência vergonhosamente humana. 

Há uma belíssima cena similar a cena conclusiva realizada por Pablo Trapero em seu Abutres (Carancho, 2010). O apogeu da jornada.

Comentários (8)

Felipe Ishac | domingo, 15 de Novembro de 2015 - 07:59

caralho nilmar, vc já revisou esse aqui?

Marcelo Leme | domingo, 15 de Novembro de 2015 - 09:38

Nilmar, se este aqui fosse lançado em outra época, creio que passaria longe da premiação. Foi, sim, uma palma de ouro bastante política.

Obrigado, Cristian. Veja quando puder.

Matheus, como vai? Honestamente eu aposto que Nolan e di Caprio ainda levarão um Oscar. Mas por quê eles precisam de um?

Nilmar Souza | domingo, 15 de Novembro de 2015 - 12:27

Sim Lipe, ganhei um ingresso esses dias e fui rever.

É bom ressaltar a divulgação do filme, terrível. Tá nas salas por aí e ninguém sabe ou se interessa em ver (muito pelo marketing preguiçoso). Nunca vi um vencedor da Palma com tão pouco apelo.

Leandro Moura Lima | quarta-feira, 30 de Dezembro de 2015 - 14:34

Concordo com a Nilmar no tocante à divulgação de Dheepan. O fato é que todos os ganhadores de Cannes sempre tiveram um marketing bastante fraco no Brasil, mas acho que nenhum vai conseguir superar Winter Sleep. Chegou no Brasil com mais de um ano de atraso e passou em pouquíssimas salas (na verdade, eu só vi ele passando no Cine Belas Artes de SP. Nem mesmo Salvador, que tem um circuito de arte bastante amplo, chegou a ter esse filme em sua programação). Dheepan foi distribuído pra cá bem mais rápido, muito provavelmente devido à temática da imigração, que virou a coqueluche do momento.

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