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Críticas

Cineplayers

A classe maltratada.

7,5
Quais são os ingredientes necessários para fazer um grande filme? Maria Carolina e Igor de Souza conseguiram um feito invejável em Diários de Classe e certamente isso vai além da construção imagética, de dispositivos cinematográficos mirabolantes, uma equipe gigantesca ou um orçamento generoso. Às vezes basta saber o que quer, e a valoração qualitativa passa a caminhar por outros vieses. Maria Carolina e Igor tinham em mãos um tema potente, personagens carismáticas e um roteiro difícil, complexo até. Se sobraram ideias no cômputo final, não faltou empenho em coloca-las todas em pauta. A sensação de catarse provocada pelo longa é imensa, um dos raros filmes do Olhar de Cinema 2018 onde o relógio não foi conferido nem a título de curiosidade.

A dupla de diretores segue três processos educacionais distintos mas igualmente problemáticos: mulheres em sistema de cárcere, adolescentes em abrigos e uma escola noturna para adultos, os três casos na Bahia natal dos realizadores. O filme, conforme o título diz, adentra essas salas de aula pra tirar de suas análises o ponto onde a sociedade esqueceu a educação, a ponto dela ter sido colocada de lado e transformada em supérfluo. A fala de uma das professoras é de impacto: "meu trabalho é mostrar a vocês que isso aqui pode ser uma prioridade". Através dos três cenários, o filme debate nas próprias salas de aula as realidades de suas alunas, e abre discussões muito humanas e reais, além de oportunas, sobre machismo, feminismo, racismo, homossexualidade, empatia, justiça, tudo saindo da boca de personagens que foram lançados na selva sem direito a segunda chance.

O filme passa a desdobrar suas ações e o que antes era o universo educacional como salvação de vidas, passa a também focar na história de três mulheres específicas de cada um daquelas turmas. Maria José tem uma incrível percepção de sociedade e luta para mudar o seu entorno; Vânia está a espera da revisão de seu processo atrás das grades; Tiffany é uma adolescente trans ainda tateando em novo entendimento de gênero. As três poderiam estar em quaisquer outros lugares, mas foram achadas pela câmera do longa, que amplia suas vozes para além da revolta e do medo. Ao serem reverberadas em conjunto, fazem nascer uma potência de alcance muito representativa, enquanto mostra o quanto uma parcela da população só aparenta não ter noção do seu espaço. 'Diários de Classe' rediscute máximas em relação a populações de baixa renda e baixa escolaridade, os situando como atuantes e cientes de seu papel e de como podem encarar as mudanças necessárias.

Ainda que o resultado final da produção demonstre um certo desacerto entre as apresentação das muitas vertentes apresentadas na pesquisa, com situações dispersas e excessivas para criar uma estrutura cinematográfica coerente e concisa, conseguindo espaço para a religião, para entrevistas formais, para retratos externos ao plano, o filme é mais do que uma estreia banal de fim de semana. Dando voz a uma fatia que ainda tem espaço reduzido na vida urbana e ainda mais no cinema, Maria Carolina e Igor acertam em cheio numa demanda ao mesmo tempo em que realizam de fato. Com planos muito acertados e enquadramentos que vão além da estrutura de um documentário tradicional, e se insere num estilo de produção mais livre e mais arriscada, que se permite errar para reverberar para além do seu tema. E do seu tempo.

Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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