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Críticas

Cineplayers

O crime (quase) perfeito.

9,0

Bruno Anthony (Robert Walker) e Guy Haines (Farley Granger), de Pacto Sinistro (Strangers on a Train, 1951), fazem um trato que consiste em um matar o desafeto do outro, a fim de não deixarem rastros. Já Brandon Shaw (John Dall) e Phillip Morgan (Farley Granger), de Festim Diabólico (Rope, 1948), promovem uma festa no mesmo local onde acreditam ter cometido o crime perfeito, só para provarem sua suposta superioridade intelectual. E para quem sabe o desfecho dessas duas grandes histórias – e não é preciso ter assistido a nenhum desses filmes para deduzir – fica claro que nenhum desses personagens alcançou a difícil façanha de cometer um crime perfeito. De modo que só nos resta recorrer à mesma pergunta feita por Grace Kelly a Robert Cummings em Disque M para Matar (Dial M for Murder, 1954): você realmente acredita em um crime perfeito?

Uma situação sempre recorrente na maioria dos filmes de Hitchcock é a de uma tentativa de crime perfeito sendo frustrada. De certa forma, em quase todas as ficções que envolvem a trama de um assassinato, há sempre um personagem procurando se safar das consequências de um plano que, infelizmente, não deu certo. E em Disque M para Matar, toda essa dinâmica é potencializada pelo clima sufocante de um ambiente pequeno. Passado inteiramente dentro de um apartamento, a trama do filme se bifurca em dois grandes atos. O primeiro envolve a elaboração de Tony Wendice (Ray Milland), um ex-tenista, no planejamento do assassinato de sua esposa, Margot (Grace Kelly). A partir do momento em que esse plano aparentemente infalível começa a desandar, inicia-se um segundo ato, no qual o protagonista terá de correr contra o tempo e reverter toda a situação a seu favor novamente.

Com seu costumeiro requinte e sutileza, Hitchcock só precisa das duas cenas iniciais do filme para inteirar o espectador dos conflitos de seus personagens. Na primeira, temos Grace Kelly, trajada de um virginal suéter branco, tomando café enquanto lê as notícias do dia no jornal e recebe um beijo rotineiro de Tony. Na situação seguinte, ela traja um tórrido vestido vermelho enquanto beija ardentemente seu amante, o escritor Mark Halliday (Robert Cummings), para depois lhe confidenciar que anda sendo chantageada e extorquida por um anônimo que diz saber sobre o caso dos dois. As duas cenas não duram mais que cinco minutos e são o suficiente para entendermos o começo de uma trama inicialmente simples, mas que se revelará muito mais complexa e cheia de detalhes do que se poderia imaginar.

Do outro lado da história, temos um Ray Milland em espetacular atuação, na pele do grande vilão da trama. Ao contrário do que Margot e Mark pensam, Tony já está ciente do affair de sua esposa, e por conta disso arquiteta um plano super elaborado e cheio de detalhes para eliminá-la de vez e ficar com toda a herança só para si. Para que o golpe dê certo, ele chantageia um ex-colega de faculdade para que este cometa o crime. Mais uma vez, Hitchcock usará o mínimo – mas o suficiente – de tempo para vender ao espectador essa ideia de assassinato. Enquanto Tony explica a seu cúmplice o passo a passo de seu plano, a câmera do diretor passeia gradativamente pelo pequeno cenário, acompanhando o raciocínio do planejador com exatidão de mestre.

E nesse meio termo fica impossível tomar lados. Tony é tão sarcástico, cáustico e calculista – mas não por isso menos carismático – que fica impossível não desenvolver uma indecente empatia pelo personagem, impedindo uma possível rejeição do público. Grace Kelly, por sua vez, acaba se tornando vítima da situação, mesmo que inicialmente seja ela a adúltera; portanto, também é impossível não torcer por ela. E tudo ganha um revés inesperado quando a trama de assassinato dá errado, e Margot acaba conseguindo escapar e matar seu agressor. A partir deste momento, Hitchcock desconstrói a figura de seu vilão e recomeça do zero a construir um novo plano de ação, ainda mais brilhante que o primeiro, que conseguirá reverter toda a história e deixar Margot como a principal suspeita do crime premeditado. Nesse ponto, o espetacular duelo de atuações ganha sua importância máxima, quando Ray Milland aos poucos vai perdendo sua frieza calculista para dar espaço a um desespero contido, ao mesmo tempo em que Grace Kelly perde sua aura de femme fatale para se transformar na pobre e indefesa vítima.

O filme é baseado em uma peça da Broadway e por isso há todo um cuidado de Hitchcock em manter o aspecto teatral, em especial por se tratar de um ambiente de poucas mudanças de cenário. Seus planos amplos permitem ao espectador acompanhar os atores caminhando pelo assoalho, mas isso não o impede de potencializar alguns momentos ao ousar colocar a câmera em ângulos rasteiros (na cena da tentativa de assassinato, onde a mão de Grace Kelly pegando a tesoura para se defender fica em primeiro plano), ou mesmo superiores (durante a explicação de Tony sobre seu plano), até cair por terra junto com o cadáver do agressor. Sob essas perspectivas, o pequeno e sufocante ambiente ganha um aproveitamento tridimensional e em momento algum se torna cansativo ou enfadonho, realçando assim a capacidade do diretor em saber aproveitar seus cenários e suas situações com uma precisão de mestre.

Até em alguns detalhes pequenos se nota o cuidado de Hitchcock em enriquecer o conteúdo de sua trama, mesmo que de forma bastante sutil. O figurino de Grace Kelly, por exemplo, é uma espécie de termômetro da situação. No princípio está sempre usando belos vestidos, de cores fortes, em especial um vermelho paixão, como representação de sua condição de amante sofrida. Mas à medida que o filme se desenrola e sua situação vai se complicando, suas roupas se mostram mais conservadoras, em apáticos tons de cinza.

Disque M para Matar foi um dos filmes pioneiros no uso bem sucedido da tecnologia 3D. Claro que naquela época a tecnologia ainda estava em estado bastante inicial e até experimental. A cena em que mais se nota a empolgação de Hitchcock no uso desse formato é justamente a mesma do clímax, quando Grace Kelly consegue se desvencilhar nos braços do assassino e tateia desesperadamente pela tesoura sobre a mesa – e sua mão vem em direção à câmera em puro momento de horror. Entre outros truques para o aperfeiçoamento da técnica há também a colocação dos móveis e objetos em primeiro plano em relação às paredes e fundos, intensificando o efeito intrínseco em um cenário já propício para isso, em especial ao notarmos a movimentação dos atores pelos vários “níveis” de profundidade.

Talvez não tenha sido dessa vez que o crime tenha compensado, até porque Hitchcock decidiu abrir uma exceção e colocar um simpático inspetor de polícia no meio da trama para desvendar todo o plano (digo exceção porque geralmente, nos filmes do diretor, a polícia se mostra sempre ineficiente ou corrupta). Mas independente de Tony Wendice ter conseguido ou não alcançar a difícil façanha de realizar finalmente um crime perfeito, o que importa é que Hitchcock mais uma vez alcançou a supremacia nesta obra-prima, que apesar de não ser tão lembrada quanto deveria, reafirma a genialidade do mestre com classe.

Comentários (10)

Victor Ramos | sexta-feira, 17 de Agosto de 2012 - 20:46

Dentre os maiores clássicos, considero este o o mais fraco do velho hitch. Um filme menor dele.

Mas ainda assim muito bom.

Lucas Castro | sexta-feira, 17 de Agosto de 2012 - 22:31

Bota menor nisso.

Diego Henrique Rezende | sábado, 04 de Abril de 2015 - 16:59

Crítica perfeita do Heitor para este que é meu preferido do Mestre. Filmaço sem qualquer ressalva.

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