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Críticas

Cineplayers

O filme de Lee Jones é um faroeste revisionista formado por personagens de virtudes limitadas.

8,0

Ao final do segundo ato de Dívida de Honra (The Homesman, 2014), qualquer sala de cinema no mundo encararia a tela em silêncio, com expressão atônita, diante de um daqueles plot twists inimagináveis e, ainda assim, moralmente necessários.

O faroeste deixa de ser apenas faroeste para tornar-se um faroeste revisionista a partir do momento em que a cultura e mitologia do western são postas em cheque, cedendo lugar a confecções de histórias que questionam o heroísmo, a ordem social e o capital da mais fantástica era da história americana.

Historicamente aceita-se que o mais icônico dos faroestes revisionistas primitivos foi Era Uma Vez no Oeste (C'era una Volta il West, 1968), porque traz consigo um aspecto fundamental dessa mudança: a ferrovia.

Portanto, o faroeste nasce com No Templo das Diligências (Stagecoach, 1939) e perece com a obra-prima de Sergio Leone simplesmente porque, a partir da linha de trem, os Estados Unidos estariam mapeados. Não seria mais o tempo da exploração e do assentamento. O território já havia sido politicamente conquistado.

Dívida de Honra acontece um pouco no meio desse processo. Como parte da conquista do território norte americano, algumas pessoas se estabeleceram em algum ponto insólito do território de Nebraska. O centro da cidade com cerca de dez edifícios rodeado por ranchos e fazendas cheios de distância.

Uma dessas fazendas é a propriedade de Mary Bee Cuddy, uma mulher de 31 anos de idade, completamente apta para arar a terra, cozinhar, cuidar de gados, cavalos e tudo mais, vivendo completamente solitária. A mulher, natural do estado de Nova York, deseja casar e, se possível, construir uma família, mas é referida como “chata” e “mandona” pelos seus pretendentes.

Enquanto isso, três mulheres da pequena cidade são acometidas pela loucura. Theoline perdeu seus animais, Gro sua mãe e Arabella seus três filhos. Os assentadores conquistaram, de fato, o território, mas saíram perdendo feio na luta contra a natureza, sob a forma de um inverno impiedoso.

Em razão dessa loucura, as três mulheres devem ser levadas de volta para Iowa, onde ficarão sob os cuidados do reverendo Carter. Como nenhum de seus maridos demonstra a menor coragem de realizar a dispendiosa viagem, Mary Bee se oferece para a tarefa, já que é uma mulher “incomumente sozinha”.

Como companhia, ela terá um sujeito bruto que se identifica de maneira claramente cínica como George Briggs. Briggs aceita viajar com Mary Bee porque a mulher o salvou da forca, mas principalmente também porque espera uma recompensa de 300 dólares no destino.

Dívida de Honra é um daqueles faroestes de jornada, a ação transcorrendo durante uma viagem cujo objetivo fatalmente será alcançado, sob a tutela do sangue e do sacrifício. O road movie é um subgênero cinematográfico onde os personagens compensam as vastas e vazias paisagens do trajeto com suas almas jogadas ao vento, despidos do pudor de estarem em um terreno social estabelecido, regido por padrões de comportamentos definidos.

Na estrada, em muitos casos, não há sociedade. Há apenas o homem, agora finalmente livre para existir enquanto a besta incontrolavelmente passional que sempre foi, frente-a-frente da natureza, silenciosa e precisa, admirável e horripilante.

Quando a viagem de Mary Bee e Briggs se inicia, uma das mulheres exprime gritos terríveis que ecoam pelos desertos como um alerta profético: a loucura pode ser contagiosa. Mas não são as três mulheres que propagam esse terrível vírus. Um dos personagens, ao encontrar-se só diante de um deserto imponente e interminável, não possui outra coisa a olhar se não para si mesmo, e o resultado é desagradável.

De qualquer maneira, o filme não evita as figuras e virtudes geralmente atribuídas ao faroeste americano. Existem heróis, ainda que improváveis, e existe honra, ainda que passageira. Os temas de Dívida de Honra aparecem na medida em que os corações de seus protagonistas são desbaratados, revelando seres de integridade falha e força limitada.

Mary Bee e Briggs não são capazes de suportar serem quem são por muito mais tempo, caminhando para longe da honra à qual o título em português faz referência, escapando de maneira trágica e inescapável do momento-virtuose compreendido durante o decurso narrativo da história. Talvez tenham sido assim muitas jornadas colonizadoras americanas. A força não era um talento inerente de um povo que, à custo de muito sangue, desbravou o território da maior nação do século XX, mas uma característica transcendental, adquirida por um breve momento, até que esse povo voltasse a ser formado por homens frágeis e amedrontados, como todos somos até os dias de hoje.

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