Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Documentário saudosista sobre o ontem e o hoje na realidade de travestis.

7,0
Todo o apoio de Leandra Leal para a concepção de Divinas Divas é visivelmente presente para que as histórias contadas atinjam uma aura especial, de louvor, reverência e apego à afetividade. A pessoalidade do projeto transpira desde os primeiros minutos, quando a voz em off de Leandra se faz presente e se coloca como um primeiro ponto de mergulho no resgate das lembranças e memórias da primeira geração de nomes e rostos icônicos de artistas travestis do Brasil, que explodiram durante os anos 60 com suas apresentações, e onde tudo teve início no Teatro Rival, local cultural que Leandra herdará de seu avô, e que agora serve de palco para um reencontro saudosista entre Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujica de Holliday, Eloína dos Leopardos, Brigitte de Búzios e Marquesa, esta última falecida após as filmagens e à qual o documentário é dedicado.

E em Divinas Divas, num desejo de ode a esta classe artística, é extremamente prazeroso, de início, notar o quanto Leal não hesita em vincular sua extrema pessoalidade para com aquelas histórias, narrativas e diálogos, não nos deixando esquecer de seus primeiros passos com a arte da atuação, do espetáculo, heranças estas de sua mãe Angela Leal e de seu já mencionado avô, Américo Leal. A diretora ressalta seu vínculo íntimo a tudo que será narrado ali, e num belo exemplo de auto-consciência, jamais permitindo que tal pessoalidade engula o que há de realmente importante em Divinas Divas que não sejam as próprias divinas divas.

Claramente essencial e importante do ponto de vista social e como um objeto de acusação sobre o extremo conservadorismo atrás das câmeras (foram cerca de sete anos até a finalização do longa), Divinas Divas encontra igual voz e força discursiva enquanto veículo cinematográfico para criar sua própria narrativa, por mais que existam pequenos percalços neste caminho em elevar a aura do documentário para algo do qual ele não precisaria. Pois vejam, é notável como o roteiro de Carol Benjamin, Natara Ney, Lucas Paraizo e a própria Leal se torna insuficiente quando tenta abraçar todas as suas personagens de uma única vez, prejudicando aí a atenção de umas em detrimento de outras, por mais que as atrizes consigam, por si só, conservar sua própria particularidade. Quinze minutos a menos na metragem de quase duas horas e uma distribuição mais cuidadosa na presença de cada rosto teria beneficiado a fluência narrativa de Divinas Divas.

Mas é recompensador como o filme, em determinado momento, transcende sua identidade cinematográfica, seu próprio gênero documental, para tomar ares de um arquivo nostálgico, emocional (sem ser piegas) e pulsante sobre o ontem e o hoje no cenário das travestis do Brasil, que ainda marginalizadas e vítimas de uma caricatura social, afirmam que “nós tínhamos mais espaço antes do que temos hoje”. Uma denúncia sem muitas papas sobre as recompensas para estas artistas em um país retrógrado.

E é na força de resistência destas artistas que Divinas Divas se constrói, na acidez de cada uma e na naturalidade dos posicionamentos de câmera, nos depoimentos ora divertidos, ora extremamente tocantes. O burlesco daquelas vidas está ali, sem os exageros estereotipados que conhecemos, o que denota a sensibilidade de Leandra sobre o material, passeando entre a comédia e a melancolia da vida de maneira muito orgânica.

Sem fugir de sua extrema aproximação com o que é contado em tela e aproveitando todo o saudosismo para transformar Divinas Divas tanto em um material histórico para a memória de sua família, como também um testamento visual para suas divas, o filme nos agarra e conquista com seus sentimentos tão energizantes e carinhosos, sentimentos estes facilmente maiores que as gorduras do documentário, nos recompensando com sorrisos, lágrimas e uma extrema satisfação por aquelas histórias nos serem contadas. E com tanto respeito.

Comentários (0)

Faça login para comentar.