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Críticas

Cineplayers

Reviver os anos 70 e delinear o contemporâneo.

7,5
Aviso: o texto pode conter spoilers da trama

O que o mais novo revival saudoso setentista Dois Caras Legais (The Nice Guys, 2016) e aquele que imortalizou, no contemporâneo, a década, Boogie Nights (1997), têm em comum? Algo se faz necessário responder primeiro: o que é mesmo a noção de contemporâneo senão esse tempo presente e esquizofrênico que decidimos eleger como amálgama de todos os outros tempos, era absoluta da reprodutibilidade alterada de tudo o que já foi, que dita o que está in ou out, mas sempre baseada no passado, sempre reformulando-o para encontrar, aqui (e lá também, por sinal), um novo ângulo, um novo furo, a mesma coisa dita de outra maneira, seja ela o que for. E se esquecemos que esse passado também olhava, ele mesmo, para o seu passado, e que a visão que temos do primeiro já pode ser essa criatura multiplamente fusionada, para não falar nas outras espirais da qual isso que chamamos de contemporâneo, feliz ou infelizmente, não tem noção, qual é a resultante? Uma caralhada de círculos? Seriam eles concêntricos? Há uma resposta possível, e ela é semelhante ao que Holland March (Gosling) e Jackson Healy (Crowe) parecem estar dizendo o tempo inteiro um ao outro: foda-se. A liberdade existe.

Maneirista cujo fascínio imagético se dá, encontra ritmo e emprega dinamismo através do filme de ação noventista, e alicerçando os mais descabidos tiroteios e porradas com o tom humorístico típico do pastelão Chapliniano, a dupla dirigida e roteirizada pelo mesmo Shane Black dos Máquina Mortífera 1, 2, 3 e quase 4 é simbólica dessa nostalgia e constante reciclagem pelo cinema americano das suas próprias duplas cômicas, ou comedy duos (Cheech & Chong, Laurel & Hardy, Martin & Lewis etc), famosas, obviamente, por disparar com o riso pelo mau gosto, pela violência nonsense e pela trapalhada sucessiva, mas também (e especialmente), se colocado diante de uma dezena de filmes americanos recentes, filmes que, aliás, uma certa tendência da comédia francesa ensaia copiar de maneira pífia, e cujo apelo ao humor se encarna pelas vias do vexatório e das humilhações desritmadas, como se em algum lugar do mundo ou do cinema o constrangimento por si só fosse o depósito de todas as gargalhadas possíveis.

Não, o ritmo de Black é quase milagrosamente Hawksiano: Holland, braço quebrado e em cima de um mostruário de carros giratório, combate o bandido (há realmente bandidos neste filme?) psicopático enquanto seu parceiro Healy atira descontroladamente para todas as direções. Cinco ou seis andares acima, sua filha de não mais que dezesseis anos salva o rolo de filme - a grande relíquia que todos, afinal, procuram – lançando-o num aparente escorrego de ventilação, acima do qual sua arqui-inimiga à la Jackie Brown ou Pam Grier, molhada de café frio do pescoço para baixo por um erro de golpe, bate a cabeça num ferro qualquer e desmaia novamente. O rolo, que àquela altura parecia mais a reencarnação do bebê de Ninguém Segura Esse Bebê (Baby's Day Out, 1994), sai voando descontrolado e reformula as prioridades de todos os detetives, agentes, seguranças e assassinos. Curiosamente, a grande pérola da cena criada por Black é que o inimigo não está ali: ele é a grande máquina industrial automobilística americana, e foram os próprios anos 70, com a literatura e o cinema, que provocaram todo o feeling que o filme mascara com grandioso humor: há um inimigo maior, intocável, disperso em corporações, dispositivos, meios de controle e rastreamento, produção de consumo e estímulo velado à destruição do próprio planeta; ou melhor, como acreditavam à época, da sociedade ocidental. 

E a possível reposta para a pergunta feita ainda mais acima, a que questiona e concomitantemente lança este filme numa aliás tríade nostálgica com Boogie Nights e Vício Inerente (Inherent Vice, 2014) pode muito bem ser a seguinte: é que há um maravilhamento, um encanto quase feiticeiro nos anos setenta e que se desmembra no que a década guarda de festivo, de fortuito e informal, de groovy e despirocado, que se ramifica nas dezenas de plots, subtextos, personagens diversos, estes sempre submetidos a outras dezenas de variáveis, mas paradoxalmente agradecidos e embalados nas ondas de prazer consequentes dessa multiplicidade precisamente pela loucura febril que esse conjunto de anos representou. Representou, na verdade, para nós, que consumimos o produto, o amálgama, a referência. Para eles, que ao mesmo tempo são e não são aqueles personagens (melhor chamá-los de ícones), como é possível dizer? É para isso que o cinema existe.   

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