Se por vezes criticamos determinadas escolhas por parte do Festival de Cannes, é preciso bater palmas quando vemos, em plena Competição, um filme como Drive, cuja vitalidade, coragem e risco renovam nossos ânimos cinéfilos: é raro ver em tela um cinema realmente jovem, que traz consigo uma série de referências sem no entanto se prender demais a nenhuma, de clima retrô (década de 1980 com força), mas respiração contemporânea. Eis o bom e velho Cannes da Palma de 1990, dada a Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990) e a de 1994, a Pulp Fiction: Tempo de Violência (Pulp Fiction, 1994). Ainda que não vença e mesmo não conseguindo manter inteiramente seu fôlego, Drive já é a surpresa de Cannes 2011.
Tarantino e Lynch, coincidência ou não, foram dois dos nomes que vieram à mente durante a projeção de Drive. O primeiro em função da precisão e da pegada firme das cenas de perseguição automobilística conduzidas por Refn: tensas e elétricas sem nunca serem histriônicas, cenas de ação com pausas, tempos de respiração, construção de cena e jogos de efeito com os espaços, ao invés de um retalho feito a partir de centenas de microplanos registrados randomicamente por diversas câmeras, jogados na mesa do montador para que o mesmo invente uma cena qualquer – procedimento padrão da maioria do cinema de ação hollywoodiano realizado por não-diretores os mais variados.
E Lynch em função da fantasmagoria retrô do filme de Refn, que inevitavemente traz Coração Selvagem e Estrada Perdida (Lost Highway, 1997) para a conversa em diversos aspectos, dentre eles a maneira de fazer o passado coabitar os espaços físicos e simbólicos do presente, criando um lugar de suspensão no qual ambos se fundem indissoluvelmente e a dimensão romântico-musical do filme, que se constrói em cima desse universo suspenso. Poderíamos, ainda, trazer todo um outro universo de referências, tais quais Taxi Driver (idem, 1975; que também ganhou a Palma), alguns Friedkin, Dirty Harry e etcs, mas deixemo-nas aos próximos interlocutores. Por ora voltemos ao filme.
Driver é o “nome” do personagem vivido por Ryan Gosling, que trabalha na oficina de Bernie Rose, seu amigo e espécie de protetor, além de trabalhar eventualmente como dublê cinematográfico em cenas de ação e ainda como motorista freelancer em eventos criminosos diversos. Intropectivo, quase inatingível, é o solitário urbano definido por sua ação: ele é o que faz – e o faz como ninguém. No entanto, ainda que sua atividade o defina, ela nunca o completa, dando ao personagem uma espécie de condição essencial e inevitalmente solitária. É uma presença marcante, mas espectral, em uma cidade de aparência igualmente encantadora (e a fotografia em alto contraste do filme é lindíssima, construindo imagens noturnas da paisagem urbana que não serão facilmente esquecíveis), mas impessoal e melancólica em sua essência.
Ele terá um encontro fortuito com sua vizinha Irene (Carey Mulligan), que vive sozinha com seu filho e cujo marido (Oscar Isaac) está prestes a sair da cadeia. Será o amor a saída possível para a solidão interminável? O filme trabalha com essa matriz (ver Fogo Contra Fogo [Heat, 1995]), mas de maneira curiosamente própria: embora claramente atraídos, ambos nunca se envolvem efetivamente – e é justamente ao tentar ajudar o marido de Irene, que se vê em apuros após sair da cadeia, que o personagem fará dispara a incontrolável cadeia de eventos que atingirá a todos. E essa dimensão moral, se nunca encarada diretamente, nunca deixará de existir ou será desimportante. Ela paira de maneira peculiar, nos silêncios e pausas criados por uma direção de atores estranhíssima, que por vezes resvala no caricatural, mas que com o tempo vai se mostrando cuidadosamente concebida para que se gere um estranhamento fundamental ao filme, que parece desejar certo distanciamento dramático do espectador, ao mesmo tempo que quer – e de maneira geral consegue - um forte envolvimento sensorial.
Infelizmente, como dito, Driver não consegue segurar-se em lugar tão alto em toda a sua duração, sofrendo uma queda perceptível de ritmo e força, talvez por investir demais em determinadas cenas de violência mais explícita (que causaram frenesi entre o público jovem da sala Debussy) – ainda que pessoalmente goste de algumas delas, é inegável que colaboram para que o clima cuidadosamente construído, sobretudo na primeira metade do filme, se esvaneça em alguma medida. No entanto, não o suficiente para prejudicar a experiência como um todo. Ainda que não vença a Palma, é um filme que traz uma pulsação de juventude importante para o Festival de Cannes e, consequentemente, para o cinema de hoje.
Visto no Festival de Cannes 2011.
"Construído nas bases do Taxi Driver peca em escolher como protagonista um galã hollywoodiano que não consegue dar profundidade ao papel!"
Taxi Driver? Não consegue dar profundidade ao papel? O quê?
Acabei de assistir. Sinceramente faltou profundiade no personagem, nenhuma das soluções esclhidas por ele me convenceu.
Achei um baita filme. A transformação do personagem foi muito bem feita, mais pelo diretor do que por Gosling, que parece estar sorrindo o tempo todo, apesar de não achar sua atuação ruim. Acho, por exemplo, a cena no motel com a ruiva muito bem atuada.
Concordo que o ator não tem o perfil do personagem. Se Ledger estivesse vivo, seria dele o papel com certeza.
Cinema ainda é a força de uma imagem, e com certeza em imagem esse filme é show 😎