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Críticas

Cineplayers

Desejo e reciprocidade.

8,0
Uma jovem chega à casa de uma madame e desta recebe a gélida recepção de que está atrasada. A mulher senta numa poltrona, abre um livro, e no segundo exato em que a outra faz o mesmo, pergunta-lhe se havia dito que ela podia sentar. A garota, encabulada, levanta-se e é ordenada a começar os serviços pelo estúdio, com o diferencial de que, desta vez, não deve tomar o dia inteiro só naquele lugar. Retorna no que entendemos ser horas depois, afirmando ter acabado tudo. Seu corpo é tenso, retraído, e seus olhos, quase assombrados, indicam algo de expectante. Bem no fundo, sente-se, é bem possível que essa ansiedade do olhar simbolize algum tipo de desejo, vibrando na íris esverdeada. A mais velha (Cynthia) a diz que o serviço só estará terminado quando ela quiser e pede que a menina (Evelyn) lave e estenda sua roupa íntima, mas não com a máquina, com as mãos. Serviço também terminado, pede a garota que espere; é preciso confirmar se a tarefa, que a esta altura já nos parece muito mais com uma tortura, foi bem realizada. Retorna com uma calcinha suja em mãos, controladamente furiosa. A menina pede desculpas pela desatenção e diz que pode terminar em poucos minutos, que tudo aquilo não era um problema, ao que o sopro fatal é desferido: ''não, você não pode lavá-la, e isto é um problema, porque tenho outros planos para você agora''. E a punição, a que não temos acesso pelos olhos, tem início. Trompe-l'oeil quase perfeito: tudo não passava de uma encenação.

O mais impressionante de toda a cena que se desvela é como, curiosamente, todo o seu efeito pode ser quebrado com um corte. O que se apresentava como um aparente conto sombrio sobre a natureza da obediência como um invólucro do desejo na verdade se fusiona (ou seja, não deixa de sê-lo, torna-se outro por adição), à medida que entendemos tudo aquilo ser um jeu de séduction, com duas instâncias: uma de perpetuação do rito – as duas mulheres reecenarão tais atos durante todo o filme – e uma outra que deseja tratar das qualidades dos sentimentos que uma sente pela outra. A esta segunda, vem corroborar o fator de uma ausência: não há homens no filme. Nem por menção nem por presença. E dado que sua temporalidade é difusa, posto que o evento podia estar acontecendo numa época específica e ser facilmente rastreado pelo vestuário e pela direção de arte intocável, mas também num tempo qualquer, já que o dispositivo cinema permite que um tempo-espaço seja muito bem materializado exclusivamente por mulheres, o que Strickland põe aqui é uma redoma quase impenetrável de análise, bem como Cynthia faz com as borboletas e mariposas que estuda. 

É como se O Duque de Burgundy (The Duke of Burdundy, 2014) confiasse-nos uma posição para além da observativa: é preciso enxergá-las como mulheres e como fêmeas, tornar científica a sua ritualística de prazer. E o que dá o gozo à Evelyn é a representação de uma frieza perante a qual ela deve estar abaixo, submetida, e diante de um par que deve inspirá-la. Quando não jogam, quando Cynthia não está absoluta na maciez perversa dos trajes que a própria garota compra para ela, não há desejo. ''Eu te amo'', a mais velha dirá, e para tanto, ''seja mais convincente da próxima vez''. Mas como o Coisas Secretas (Choses Secrètes, 2002) de Brisseau vem respaldar, a transgressão é inerente ao desejo, e quando não podem ir mais além na representação do disfarce  impenetrável da superioridade – porque Cynthia ama a outra -, o cristal começa a ruir. A mais jovem se lança à última tentativa, pede para ser trancada, amarrada, num baú cuja chave não possa estar em sua posse. Retorna ao escuro imóvel, espécie de útero primordial para exercitar (e excitar) o derradeiro estágio de seu gozo: a punição que não dispõe do toque ou do olho. O prazer, sabe-se bem, está no ato de imaginar, não tanto na matéria em si. Nisso reside a esperteza infantil da garota que luta o tempo inteiro para impressionar.

Cynthia e Evelyn não são as Petra e Karin de Fassbinder. A única certeza que se pode ter - e esta ainda é um tanto derrapante – é a de o que quer que tenham sentido por suas aprendizes, foi experienciado como algo mais puro que aquilo dado em retorno. Longe do cinismo e poder de uso da personagem de Hanna Schygulla, não é que o que fica dado se mostre nos termos da dúvida ''Evelyn amou ou não?'', mas de que amor Strickland está falando; ou melhor: esse sentimento que dizem mover o mundo é Uno? Predispõe da sexualidade e nela se mistura, ou pode partir dela? Se ele existe aqui, não se pode negar, é nos termos da representação. Mentir uma traição (representá-la) é pior do que admitir que esta existiu, mas também mentir a própria representação, falhar no jogo de dominação, escapar o choro, o cansaço, a falta de preparação, a vontade esgotada de encenar, é extrair a vida daquilo que inspira a menina: o absolutismo do campo de forças em que ela preferia começar perdendo.   

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