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Críticas

Cineplayers

Quando um filme toca e satisfaz com a presença ou ausência de respostas, apoiando-se em atuações magníficas, como não classificá-lo como pequena obra-prima?

10,0

Não há diálogo dispensável em Dúvida, algo perceptível desde o primeiro minuto, por meio do sermão dado pelo padre Flynn - interpretado por Philip Seymour Hoffman - na missa comandada por ele. O conteúdo de seu discurso evidencia a natureza liberal em relação aos dogmas da igreja católica, e a lágrima que contorna seus olhos revela instantaneamente a natureza emotiva e humana do religioso. Em contraste, surge na sequência a freira Aloysius (Meryl Streep) que enxerga no conservadorismo da igreja o principal trunfo formador de caráter da instituição. A irmã é diretora da escola católica e controla com rigidez extrema o comportamento dos estudantes.

As personalidades totalmente opostas e o pensamento moderno de Flynn parecem ser o grande motivador para a irmã Aloysius não vê-lo com bons olhos. E essa pré-disposição para enxergar defeitos no padre leva a religiosa a acusá-lo de estreitar relações além do limite tolerável com o aluno Donald Miller. A questão estoura quando a freira James (interpretada por Amy Adams) presencia Flynn colocando uma camiseta no armário do garoto, o que desencadeia uma pequena série de outras descobertas suspeitas aos olhos da irmã que comanda a escola.

E é aí que as dúvidas começam a permear o longa. O roteiro poderoso do diretor John Patrick Shanley concede ao espectador a difícil missão de condenar ou absolver o padre, e a incerteza acerca de seu caráter deixa o público ora propenso a acreditar em sua bondade ora desconfiado de suas atitudes. Temores de Flynn sobre certos acontecimentos de sua vida e movimentos corporais que não condizem com sua fala geram incertezas sobre o caráter puritano dele, ao mesmo tempo em que o carinho pelos alunos, em especial a Miller, não parece carregar nenhum sentimento além da fraternidade que cabe ao religioso.

E assim a dúvida vai ocupando cada vez mais espaço no filme, apoiado em diálogos fortes e cortantes concebidos por Shanley – em adaptação da peça escrita por ele mesmo – e interpretados com força e intensidade por um elenco afiado com o propósito do longa, conferindo à personagens aparentemente simples uma complexidade instigante. Não cabe tomar partido, por mais que haja propensão a isso. Cabe tomar para si a dor dos personagens e buscar entender o que os leva a agir de determinada maneira.

O espaço conferido aos atores é grande, consequência das múltiplas cenas em que os personagens conversam com intensidade ímpar. Assim, abre-se espaço também para as cenas mais fortes e belas produzidas pelos filmes mais recentes. Quando Flynn e as irmãs Aloysius e James conversam na sala da diretora, o assunto que começa com acertos em relação aos preparativos para o natal toma o rumo esperado desde o início pelo espectador, e os momentos que antecedem a discussão mais acalorada levam o público a quase pedir para que alguém comece a falar sobre o tema e pare logo com aquele jogo de encenação. E tudo que ocorre dentro daquela sala, e posteriormente a isso, é forte suficiente para levar o espectador a um nível de atividade cerebral e emocional que eleva a dúvida a um patamar extremo.

As magníficas passagens concebidas pelo diretor seguem durante novo sermão poderoso de Flynn. Ao intercalar as palavras dele com imagens de penas de travesseiro voando, o cineasta confere beleza visual ao poético – ou ao menos tocante – discurso do padre. E a tônica de diálogos poderosos segue, com falas que são acima de tudo desconcertantes. Por falar em desconcerto, impossível não destacar a, talvez, mais chocante, brilhante e emocionante cena do filme, o momento em que a irmã Aloysius chama para uma conversa a mãe do aluno que originou o conflito entre os religiosos. Há tempos não via uma cena tão forte, impactante, reveladora e irretocável como essa. A mãe do garoto Miler é interpretada por Viola Davis, que possui, além dessa, apenas mais uma cena em todo o filme. E não precisava de mais nada. Viola é capaz de apagar por instantes a consagrada Meryl Streep. A forma contundente e carregada de emoção com que confessa seus pensamentos e divide seus segredos íntimos com a freira abala, inevitavelmente, o espectador, que passa a entender a complexidade sem tamanho de tudo o que vem ocorrendo até ali.

Viola Davis é completa, no tom de voz, nas caras assustadas, coagida e piedosa que faz e na forma como pronuncia cada rica palavra confiada a sua personagem. Enfim, sempre tive restrições quando atores e atrizes com curtas participações eram valorizados por prêmios, mas faço aqui um apelo inútil para que deem a Viola Davis o Oscar de atriz coadjuvante, pois sua atuação é a mais completa de todas. Uma atriz perfeita que como tal merece a consagração. E se há muitas dúvidas sugeridas pela trama, não há dúvida nenhuma de que parte do brilhantismo do filme é consequência do elenco. E por que o prêmio do Sindicato dos Atores não reconheceu esse trabalho de conjunto? Injusto.

Meryl Streep sabe como ninguém encarnar os mais diversos tipos e novamente brilha ao conseguir abalar a confiança em relação ao caráter do padre. Ao mesmo tempo, e contribuindo para aumentar a dúvida que corrói o espectador, Philip Seymour Hoffman não dá muito espaço para que o condenemos, mesmo que com esperteza saiba gerar dúvidas sobre o caráter de seu próprio personagem. A dúvida presente aqui (cometeu ou não cometeu) remete à obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, no que concerne à desconfiança que Bentinho sente de Capitu. Houve traição? Não há resposta clara, cabe ao leitor, e aqui ao espectador, chegar à conclusão se a acusação faz sentido ou é apenas devaneio de uma mente doentia, que se aplica no filme pelo apego ao poder e conservadorismo da irmã diretora. Não é difícil perceber que a freira interpretada por Streep não tolera a hierarquia machista da igreja e sente-se desconfortável com a “superioridade” do padre.

Amy Adams dá vida à inocente irmã que se deixa influenciar por ambos os personagens, já que sua pureza não a permite tratar grosseiramente nem mesmo seus alunos sem que sinta um grande complexo de culpa. E Adams também se destaca a todo instante ao evidenciar como o conflito entre seus superiores a consome e a desgasta emocionalmente.

Finalizando, a maior sacada do diretor é deixar o julgamento nas mãos do público, mas não por exigir raciocínio de quem assiste, mas por forçar que a verdade mais forte de todo o filme seja dita, tornando a cena final tão brilhante e comovente quanto as outras citadas anteriormente. O que de fato aconteceu entre padre e aluno é a confissão menor e menos importante. A irmã Aloysius cobra o tempo todo do padre Flynn essa confissão, mas quem verdadeiramente precisa confessar algo é ela e a cena final traz a redenção para quem esperava, ao menos, alguma resposta.

Comentários (2)

J Correa | sábado, 26 de Maio de 2012 - 16:29

Gostei da review!

Gustavo Santos de Araújo | quarta-feira, 03 de Abril de 2013 - 23:51

Será um daqueles filmes a serem canonizados com o tempo pelas atuações soberbas. É de tirar o chapéu e o fôlego as convicções defendidas com unhas e dentes por Streep e Hoffman, sem falar na duvida e passividade de Amy Adams e na atuação segura de Viola....Incrível. PS.: Meryl Streep realmente merece o status de Hors concours no cinema Mundial.Uma versatilidade, uma transposição de verossimilhança...sempre deixa de existir e cria um ser humano..Bravo.Excepcional

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