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Críticas

Cineplayers

O documentário é um retrato preciso do que é portar o HIV nos anos 10 do século XXI.

9,0

Em épocas de selfies e de reality shows de todas as temáticas imagináveis, o exercício do cinema em primeira pessoa tem se tornada cada vez mais redundante – afinal, adolescentes de todas as nacionalidades com todo um espectro de problemas diferentes já viraram suas câmeras para si e nos presentearam com alguns longos minutos sobre as suas vidas. Então, ler a sinopse de E agora? Lembra-me não nos deixa muito animados em relação ao que esperar do filme. Esta nos promete um documentário no qual o diretor, Joaquim Pinto, diagnosticado com HIV e hepatite C, filmará um ano de um tratamento em clinicas clandestinas.

Certo, Joaquim não é nenhum jovenzinho de 15 anos, ele fez parte de uma importante geração do cinema português (produzindo, fazendo o som e dirigindo filmes). Ainda assim, sua vida não é das mais interessantes, como o próprio afirma no início e no final do documentário: Joaquim formou-se em cinema, participou ativamente da produção de muitos filmes do cinema português e europeu, casou-se com Nuno com quem viveu anos nos Açores, os dois adotaram quatro cães com quem vivem até hoje em um pequeno sítio em Portugal. Ah sim, há 20 anos Joaquim está diagnosticado com HIV. E, nesse ponto, por comum que seja a vida de Joaquim, está extraordinário do filme.

Se a doença fez ativamente parte da realidade da geração próxima ao diretor – vitimando muitos amigos e companheiros de trabalho, que serão lembrados durante o filme -, o que E agora? Lembra-me nos dá, pela vivência de Joaquim, é um retrato preciso do que é portar o HIV nos anos 10 do século XXI.

Em determinado momento do filme, entre injeções, viagens para a Espanha para o tratamento, acompanhar Nuno e os cachorros nas atividades ao ar livre, o mal-estar relativo ao efeito colateral dos remédios, Joaquim se obceca em mostrar no filme o vírus do HIV. Ele procura na internet, ele visita um laboratório de última geração, ele apela para as imagens históricas do surgimento da doença. O vírus, de fato, ele não consegue nos mostrar como desejaria. Há algo sobre como rapidamente esse é absorvido por outros organismos e se transforma. É difícil parar o tempo de um fenômeno tão volátil. Mas é, em uma escala macro, justamente a imagem que o documentário consegue nos mostrar. Nos anos 1980, os amigos de Joaquim que morreram de HIV conviveram com uma doença totalmente diferente da que ele convive agora – antes dos coquetéis, antes dos tratamentos alternativos. Em mais 30 anos, é provável que o vírus seja totalmente erradicado ou quase plenamente minimizado os seus danos.

Como é existir nos anos 2010, uma existência que em seu cotidiano nada tem de fora do comum, com o vírus do HIV: o cansaço, a confusão mental, os lapsos de memória recente, os excessos de memória do passado, o corpo que segue, o sexo com a marido, a insônia, as horas passadas na frente do computador e da televisão. Nesse ponto, o corpo e a vida do diretor mais do que instrumentos de exibicionismo, tornam-se performáticos – o que existe de mais íntimo, de mais banal, torna-se a forma de entrar no político, no coletivo, nas questões de todos.

Sim: uma vida que continua não sendo das mais interessantes. Mas o cinema feito com e por ela com certeza o é.

Visto no Festival do Rio 2014

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