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Críticas

Cineplayers

O espetáculo do desconforto abrupto.

2,0
Louis volta para casa depois de 12 anos de ausência, mas ninguém o deixa falar. Quer anunciar a morte iminente à família, mas ninguém o deixa falar. Quer se justificar, compartilhar uma lembrança prosaica, defender a si mesmo, mas ninguém o deixa falar. De fato, se observarmos bem – ou melhor, se nos fosse permitido aliviar a torção desconfortável no rosto durante quase 100 minutos, em variações que vão do vexatório ao desnecessário, para realmente observar –, durante toda sua exasperante visita, Louis não deve ter pronunciado mais de 30 frases. E no meio disso tudo, há Xavier Dolan, cujas premiações ao redor do mundo devem ter aumentado a pompa e excitado a crença no potencial dramático, para fazer com que o garoto, pois não pode haver outra justificativa, piamente acredite que seus filmes, e em especial este É Apenas o Fim do Mundo (Juste la fin du Monde, 2016), possam ser experiências de algum modo fruíveis. Prazerosas, não: o cinema não precisa sê-lo. Simplesmente que deles possa se presenciar algo além do puro desconforto. E, aqui, absolutamente tudo converge para tal.

Porque, de certo modo, as coisas já estão dadas na longuíssima cena que gira em torno da chegada do filho à casa. Ali, os personagens têm todos os seus contornos delineados: a cunhada delicada e doce, o irmão bruto e carrancudo, a irmã revoltada e insegura, a mãe histérica e inconveniente. Nos estereótipos eles são cristalizados, e deles não sairão. Na verdade, até escapam, mas só na medida da piora. Derrapam de um engessamento para uma irritação, como se o propósito do filme (e só por este objetivo medíocre ele já se lança sob um signo de limitação extrema) fosse o de provocar, instigar-nos a um desafio de permanecer sempre um pouco mais diante de um desconforto. Mas não pioram só para si, dentro de si mesmos: para além da tentativa de psicologização, em que uma cena se segue para que a outra explique, ou ao menos deixe subentendidas as disfuncionalidades latentes de cada temperamento, Dolan se presta ao desserviço de fazer com que tudo opere com um pião girando em torno de si mesmo.

A bem da verdade, toda brechinha de convivência isolada com cada membro da família, ao que antes devia funcionar como intensificação do drama, ramificação de uma delicadeza vibrátil, só lhe serve de oportunidade para catapultar o mal-estar físico (meu (nosso) e dos miseráveis). E há dois procedimentos que justificam bem esse amálgama de opções desgraçadas: tudo é filmado em planos demasiadamente próximos, quando não em closes. O rosto de Louis, sobretudo, não escapa à microscopia da equivalência: se ele não sabe o que dizer, se não lhe permitem sequer iniciar uma frase, curiosamente, sua imobilidade atravessa a tela e se transmuta na sensação de um espectador rígido, para o qual tudo aquilo é incompreensível, para o qual o empurrão numa crise familiar desesperada e sem frestas de luz de repente se anuncia. 

Mas de que outro procedimento falávamos? Ora, há uma escancarada mise-en-scène do incômodo. Todas as possíveis forças de que um cineasta dispõe, da fotografia à direção de atores, convergem para enviar a organicidade a uma espiral decadente. Do início ao fim, ainda presos ao engessamento sufocante de seus papéis, os personagens gritam, se interrompem, dizem frases sem cuidado, pedem desculpas (mas só para depois cometerem o mesmo erro), reconstroem discursos, se corrigem, corrigem uns aos outros, gaguejam incansavelmente. Ao redor de um Louis estático, ainda em cenas arrastadas, repetem a si mesmos. O ordenamento da montagem, aliás, é precisamente este: em circunvoluções, dirão as mesmíssimas coisas que dizem desde o princípio, seguidos de um Gaspard Ulliel cujo papel parece ter sido resumido a ora permanecer de olhos abertos e com um olhar melancólico, ora simbolizar o desgaste psíquico com uma mãozinha cansada e pousada sobre o rosto.

É que Dolan esqueceu que todo filme será compartilhado com outros que também dele viverão. Ainda que brevemente, num espaço que não compreende um milionésimo de uma existência, estaremos ali, de mãos dadas com aquelas outras vidas em tela. Não é irônico que ele mesmo não consiga dar conta/se dar conta exatamente disso? Em que mundo já foi concebido ao cinema a tarefa de encerrar ou compreender um drama familiar inteiro? Dos 34 anos ao nascer, a vida de Louis, aparentemente o grande culpado do estilhaçamento, com seus medos, motivos, relações e dores, não cabe dentro da janela pulsante que é a duração de um filme. Filme, aliás, que sofre do infortúnio de estar mais próximo de outras esferas da arte do que Dolan jamais esteve. Como num encarte indie estendido, há no mínimo quatro ou cinco cenas que pontuam bem aquele que é certamente o dom irrecusável do jovem canadense: uma fotografia saturada de cores vibrantes, canções pop sem convite algum, slow motions, planos-detalhe em mãos, rostos gemendo ou sorrindo, botões desabotoando-se, saltos em pula-pula. Toda uma estética afetada que pertence a outros domínios, confirmando seu diretor como o maior cineasta de videoclipes dramatizados da história – mas seguramente não de Cinema.

Comentários (6)

Bernardo D.I. Brum | terça-feira, 14 de Fevereiro de 2017 - 22:55

É o Fim > É Apenas o Fim do Mundo
Seth Rogen > Xaier Dolan

Felipe Ishac | quarta-feira, 15 de Fevereiro de 2017 - 03:13

É Apenas o Fim do Mundo não era aquele filme do cigarette burns que quem via ficava maluco e se matava?

Polastri | quarta-feira, 15 de Fevereiro de 2017 - 11:23

O do Cigarette Burns é "La Fin Absolue du Monde".

Se bem que esse do Dolan deve ser a mesma coisa, tão ruim que quem vê se mata.

Danilo Rocha | sábado, 18 de Fevereiro de 2017 - 15:44

acredito que há duas formas básicas de assistir ao filme e compreender louis: antoine e catherine, irmão e cunhada. o felipe vê o filme como antoine vê as coisas: sem beleza. catherine precisou de uma pequena cena estendida pra sacar o que louis fazia alí e qual era o motivo de seu silêncio. eu prefiro ver louis como catherine. senão não vale a pena.

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