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Críticas

Cineplayers

Galeano por Galeano.

9,0
Eduardo Galeano. Jornalista, escritor, poeta, frasista exemplar, um pensador moderno, inúmeros livros publicados, um apaixonado por futebol, um homem de rara sensibilidade para acessar o mais complexo e o mais simples, tanto no mundo quanto na alma humana. Há 3 anos atrás, Galeano morreu e não houve substituição. Mas legado não falta, e talvez seja fácil descobrir como o diretor Felipe Nepomuceno se conectou a ele. Felipe é fotógrafo, escritor, cineasta, produtor, tem livros publicados, ganhou prêmios como cineasta, e essas infinidades de atividades os ligou, e desse encontro nasce esse filme-ensaio. Filme-poema. Filme-pensamento. Filme-fluxo. 

Galeano foi um homem que ainda teria a oferecer ao mundo e a prova está aqui nesse longa. Através de encontros com uma série de personalidades de diversas áreas em leituras de contos seus, o escritor vai adquirindo uma espécie de aura maior e que paira sobre o filme. Além disso, Nepomuceno ainda tinha horas de material filmado em bate papo com ele, fazendo com que Galeano se transforme em protagonista e vetor de sua própria homenagem. Com o texto do chileno seria fácil construir uma narrativa documental emocionante, divertida, vibrante, íntima, tudo isso junto e as vezes tudo isso na mesma cena. O desafio era filmar, e transformar em imagem o olhar de Galeano, suas palavras, sua argamassa interna que produziu um artista tão singular e insubstituível.

De fotografia em preto e branco, Nepomuceno filmou o escritor em momentos onde a leveza não apagou a intensidade de suas declarações, por mais frugais que elas aparentem, sempre nos joga de encontro à reflexão. O diretor soube fugir do que poderia ser uma armadilha, transformar as palavras de Galeano em pano de fundo para imagens de cartão de aniversário. No lugar da breguice a espreita, o oposto: a emoção dos pensamentos do escritor encontra as imagens do diretor e ambas parecem ter nascido juntas. A trilha escolhida, as imagens captadas, a opção pelo PB, e os personagens chamados para ler, de Walter Carvalho a Ricardo Darin, passando por João Miguel, tencionam momentos de intimidade e cumplicidade, como a dividir com o espectador passagens importantes de suas vidas.

Raramente a emoção no cinema advém de algo tão íntimo e abstrato; estamos acostumados a lidar com esse dispositivo de maneira mais escapista, com a trilha sonora realçando ações que buscam um lado mais interno de cada um na plateia. A catarse promovida em 'Eduardo Galeano Vagamundo' é alcançada através da palavra, e não da banalidade dela, mas do seu aspecto mais concreto, menos sensorial. É a própria verdade de Galeano que Nepomuceno consegue captar e essa extração é ofertada ao espectador que, desarmado com as leituras, com as passagens pessoais narradas pelo próprio, pela utilização dos tempos e dos símbolos, pela própria simpatia e proximidade com que o biografado se vende acessível, sucumbe a ela.

"Quantas vezes fui um ditador?" 
"Quantas vezes proibi a quem mais amei?" 
"Quantas vezes condenei por não serem eu?" 
"A quanta gente vendi, eu que sempre me acreditei a margem do consumo?" 
"Quantas vezes me senti dono de alguém?" 

Assim abre o longa, com passagens em cartelas de um livro do autor. Reflexões do próprio que cada um de nós é capaz de fazer e muitos já o fizeram. E de cara o filme joga no acertado lugar de trazer Galeano para perto de nós, fora do pedestal que o mundo acertadamente o colocou, e transformado em mortal. Um homem comum, que emociona a todos com suas próprias passagens, igualmente comuns. Mas que só os gênios sabem elaborar de maneira tão simples. 

Filme visto no 28º Cine Ceará

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