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Críticas

Cineplayers

A impossibilidade potente no cinema de Julio Bressane.

9,0

No primeiro momento em que Aurea, uma professora reclusa de meia-idade, conhece Aureo, um rapaz de 20 e poucos, ela conta para o jovem a história do amor impossível de um mortal por uma deusa, a lua. E será nesses termos, do interesse e da incompatibilidade em que a história dos dois personagens irá se desenrolar. Em sua casa, repleta de livros, quadros, esculturas e diversos outros objetos artísticos, Aurea acolhe o rapaz que torna-se uma espécie de pupilo amante - na trajetória de sua educação sentimental. Como a lua e o mortal, é evidente a diferença de conhecimento entre os dois.

Pensar a diferença geracional entre os personagens, é passar pelo que está se extinguindo. Aurea não é apenas uns 20 anos mais velha do que o seu pupilo, ela é sobretudo uma representante cada vez mais solitária de uma forma de se estar no mundo, de conhecê-lo e vivê-lo. Algo como a última herdeira de uma aristocracia erudita. Sua casa, suas roupas, seus móveis, seus gestos são traços de um mundo em extinção. O tempo impreciso dessa relação só é possível dentro daquela casa/fortaleza em que os personagens podem conversar sobre a arte, as memórias, as relações.

Junto com Aurea estão se extinguindo também as suas referências, os seus pilares, a arte (a fotografia, a pintura, o cinema) - ao menos, da forma como esses existiam e sobrevivem ali. Nesse sentido, o espaço da casa (que é quase o tempo inteiro o espaço do filme) é como ruína de um tempo que já passou, um museu que preserva esse tempo, ainda que de forma decadente - algumas paredes desgastadas, portas que não abrem direito, etc.

Se há pulsão em Aurea, mais do que em seu contato professoral ou físico com o pupilo, essa se mostra nos momentos em que ela dança: habitando o espaço quase fantasmagórico com os movimentos leves do seu corpo. Se nas outras artes os suportes estão todos em via de transição (da película para o digital, do quadro e da escultura para a instalação, etc.), na dança o corpo continua a ser o elemento principal. É aí onde a personagem deixa de ser a portadora da arte como um conhecimento enciclopédico e datado, para transformar essa em performance (misturar vida e arte no corpo).

Nesse sentido, o filme de Bressane nos lembra que o cinema é uma junção inexata da dessas artes, da literatura, da pintura, da fotografia e da dança. Sendo então, uma arte carregada de ambiguidades. Se é aquilo que se extingue em um processo aberto na nossa frente (como Aurea e sua erudição), é também essencialmente uma arte da performance dos corpos na tela. Se cabem os discursos quase declamados dos personagens, marcando a encenação como matéria prima, cabe o corpo que gira sobre si até ficar tonto e não ter mais controle. A erudição e a performance.

O filme de Bressane, feito em película, é ele mesmo essa impossibilidade potente. A impossibilidade do amor e da troca entre os personagens como ponto de partida e chegada. E também, a impossibilidade da própria narrativa fílmica - ela termina por se desconstruir no circucena, em que é preciso incluir o processo na narrativa para prossegui-la. E o filme desfaz-se (ou se refaz como making of) no momento em que o espaço da casa e da narrativa é invadido por outra personagem. Aí, já não é possível continuar: o mortal é lembrado que jamais chegará a lua.

Comentários (4)

Daniel Dalpizzolo | terça-feira, 29 de Outubro de 2013 - 08:43

filmaço, e texto extraordinário.

Luiz Fernando Coutinho | terça-feira, 29 de Outubro de 2013 - 21:53

o filme é lindo, e o texto realmente tá excelente. bressane discursando sobre amor através dos tempos.

Vítor Miranda | quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2014 - 21:59

parabéns pelo texto, kênia.
e essa josi antello é incrivel!

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