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Críticas

Cineplayers

Barbárie, irracionalidade, ignorância. O pior do ser humano e o melhor do cinema estão no filme.

9,0

Sexta-feira, dia 12 de Setembro. Ao menos neste ano, melhor época ou data para o lançamento do filme Ensaio sobre a Cegueira não poderia haver – o que dirá para escrever um texto sobre. A primeira quinzena do mês inevitavelmente traz à tona a sensação que os fatídicos acontecimentos de 2001 proporcionaram. A impressão era de que o planeta estava por um triz, imerso no caos, na barbárie, na irracionalidade, perdido na ignorância. Era como se a consciência mundial ou algo como o “imaginário coletivo” passa-se a ser cindido: enquanto a nação mais rica e influente do mundo era atacada, não era claro tampouco compreensível de imediato saber de onde a destruição vinha, o que realmente estava por trás da obscura cortina que camuflava a origem dos raivosos ataques. Embora a adaptação para o cinema do livro homônimo de José Saramago não tenha nenhuma relação direta com o famoso 11 de Setembro (até porque a obra é anterior ao marco), é inegável o fato de que ambos compartilham de mesma temática, de mesmo “zeitgeist” (a intraduzível palavra alemã que designa o espírito de uma época). O horror, o medo, o desespero, o desequilíbrio e a desesperança são só alguns dos ingredientes em comum. A grosso modo, a grande diferença entre ambos reside no fato de que enquanto na ficção, envolta por metáforas, o mundo é assolado por uma inexplicável epidemia onde todos ficam cegos (exceto a protagonista, que no filme é interpretada por Julianne Moore), enquanto na realidade, ao menos naquele caso, era o terrorismo que instaurava a degradação.

Entretanto, exatos sete anos se passaram, e saber se a coincidência das datas entre os atentados e o lançamento do filme nas salas de cinema fora algo planejado foge das minhas faculdades. Por outro lado, minha grande credulidade leva-me a pensar que o mundo convergiu, de uma forma ou de outra, para a realização deste filme e seu lançamento justamente agora – o que me leva a utilizar o velho bordão de que “nada é por acaso”. E, para espanto dos niilistas e céticos de plantão, realmente houve algo do gênero que possibilitou a adaptação da obra para o cinema – uma coincidência que, embora já alardeada pela mídia, é grande demais para ser deixada de lado. O diretor Fernando Meirelles, tomado pelo impulso ao ler o livro, havia procurado Luis Schwarcz, o editor brasileiro do José Saramago, e solicitado que ele consultasse o autor sobre seu interesse em vender os direitos para uma adaptação cinematográfica. A resposta foi negativa, e, em meio ao impasse desolador, Meirelles acabou comprando os direitos de um outro livro: Cidade de Deus. Bom, como diz o freqüente ditado, “o resto é história”. Anos se passaram, e depois do estrondoso sucesso do filme Cidade de Deus o diretor ainda realizou O Jardineiro Fiel. Eis que então o “destino” encarregou-se de fazer justiça: os direitos da adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira foram vendidos para um produtor canadense que pensou justamente em Meirelles para adaptação. Uma coincidência que o próprio diretor, ao ponderar o fato de que existem milhares de diretores de cinema no mundo, afirma ser no mínimo “assombrosa”, embora muito empolgante. Quem não ficaria tremendamente entusiasmado?

Esta e muitas outras histórias, passagens e acontecimentos que ocorreram durante o processo de gestação e realização do filme foram generosamente relatadas em um dos blogs mais interessantes que já conheci. Em uma atitude até onde sei pioneira no cinema, Fernando Meirelles, em seu blog inserido no site da produtora O2 Filmes, contava particularidades da elaboração do filme, que iam desde minuciosas descrições espaciais e sensoriais, vivências do diretor e da equipe diante do árduo e fantástico trabalho, bem como situações curiosas e hilariantes, como o sumiço do roteiro repleto de anotações (outra coincidência, pois já havia acontecido isso nos seus dois longas anteriores) e as constantes brincadeiras que o carismático ator Gael García Bernal levava para as gravações, como a de fingir estar usando lentes que bloqueavam 100% a visão, e a mais célebre de todas que até foi parar no filme, em que imitava Stevie Wonder. Portanto, ao passo que grande parte dos textos sobre o filme irá partir baseada na relação entre filme o texto de Saramago, este em especial tem um espectro diferente. Aqui a tônica será da relação entre o filme e o texto de Meirelles, o que seria simplesmente inevitável, uma vez que ao ver o filme a memória vai simplesmente evocando a escrita do diretor.

Compreendido em 15 “capítulos” (entre 24 de agosto de 2007 até 6 de março deste ano), o blog contém informações riquíssimas, e não raros eram os que agradeciam pela aula de cinema – que eu já prefiro encarar até como aula de humanismo mesmo. Enfim, começou em sua primeira postagem com a singela frase que dizia simplesmente “primeiro dia de filmagem”. E acabou, em sua última postagem, com um emblemático “amém”. Entre estas duas colocações, uma infinidade de considerações vindas da experiência in loco. Idéias que ganharam luz graças à internet e a boa iniciativa do diretor – muitos dos relatos são absolutamente marcantes. Por exemplo, ao me encontrar no escuro da sala de cinema, e ver no enquadramento Julianne Moore enchendo a tela com sua presença e carisma, a primeira idéia que me ocorreu foi imediatamente a de compartilhar o modo como o diretor e toda a equipe contemplavam a atriz, ao perceberem como sua aparição, dado seu grande talento, era capaz por si só de tornar o simples registro da sua imagem uma experiência cinematográfica. Como bem relata o diretor: “Quando chega a Julianne Moore [...], o quadro parece iluminar-se, a fotografia se completa. A tal da presença, do ‘je ne sais quoi’. Qual é a mágica destas pessoas?”.

Aliás, bastou estar no cinema e o filme já me ganhou logo de cara. Os obsessivos planos-detalhe de cada uma das lanternas do semáforo que abrem o filme tem a precisão de um esteta. A idéia imediatamente me remeteu ao trabalho do que é pra mim um dos mais geniais diretores de documentários e comercias que existe neste planeta: Errol Morris, que entre outras obras-primas assina o lendário documentário “The Thin Blue Line”, de 1988, que bem recentemente foi lançado no Brasil em DVD com o título de “A Tênue Linha da Morte”. Este tipo de ênfase no detalhe (seja visual ou sonoro) percorre todo o filme.

Desse modo, não há como ficar imune ao notável trabalho do diretor de fotografia César Charlonne. Além do impressionante tratamento estético que conseguiu proporcionar à película, com seu branco simbolizando uma cegueira do excesso de luz, coube a ele fazer importantes sugestões de locações, como bem conta Merielles. Graças a Charlonne, a produção pode valer-se da aura do centro antigo de Montevidéu, no Uruguai. Também é de suma importância seu papel na idealização e na execução do método de filmagem a quatro câmeras simultâneas (detalhadamente explicado no blog), que proporciona ampla liberdade e abre campo para a improvisação. Sua presença é sentida em todo o filme: é interessante notar como seu trabalho converge com a cenografia, a direção de arte e com o desempenho dos atores no sentido de criar uma unidade plástica. Plasticidade que é mais que espetáculo, uma verdadeira experiência audiovisual. Existe algo de esplendoroso em sua concepção, pois segundo o diretor nos conta no blog, o filme presta homenagem à pintura ao reproduzir no plano a imagem de quadros que de certa forma compõem o imaginário humano. As referências vão de Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, algumas telas do Lucien Freud, até um memorável plano que remete a pintura de Brueguel. Este tipo de recurso evidentemente não é inédito no cinema, como bem afirma Meirelles no blog. A primeira associação que me veio em mente foi Akira Kurosawa. Não por acaso, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura (exibida em 08/09), o diretor citou o cineasta japonês como uma grande referência pessoal.

Há também de ser levado em conta o grande virtuosismo no uso dramático do ajuste de foco. Um trabalho bem planejado e realizado, pois a utilização do foco na composição dos enquadramentos é de tamanha persuasão que é possível compartilhar da angústia do que é perceber que o sentido da visão está se esvaindo para o nada. As constantes fusões de branco, fade-ins e fade-outs que vêm e vão de uma ausência, aparecem entre as cenas acentuando ainda mais aquela sensação desoladora, claustrofóbica, que tem seu ápice na total escuridão pelo qual passa a personagem de Julianne Moore no mercado – pensei que aquela tortura não acabaria nunca. Uma cena digna dos “filmes sonoros” de Walter Ruttman.

O cuidado para tornar o filme o mais tocante possível exigiu um esforço profissional titânico. Prova disso é o modo como trabalhou o departamento de arte ao, no intuito de ser fiel ao universo do livro de Saramago, trazer veracidade para a tela. Para se ter uma idéia, o departamento caprichou inclusive na sujeira em cena. Como relatou o diretor, entre outras curiosidades atípicas (e que bem exemplificam o rigor da produção), o departamento de arte preparou um verdadeiro catálogo de fezes feitas com chocolate e outras misturas, desenvolveram um know-how incrível para recriar diarréia, cocô de pessoas que comem fibras, de quem só come proteína. Apesar de toda esta tecnologia para confecção destes objetos de cena correspondentes ao cenário urbano do livro, o diretor via-se diante de um dilema, de uma gangorra: de um lado a fidelidade com a descrição da obra de Saramago (que inclusive solicitou ao Meirelles que queria até mais sujeira no filme); De outro, a questão do público: como alguém teria forças para suportar o impacto dessas imagens? Se Meirelles ou qualquer outro diretor tivesse optado por seguir a risca toda a crueza e a sordidez instaurada no ambiente narrado no livro, transpondo fielmente a “nojeira” para as telas, o público do filme poderia se reduzir de modo que nem o maior dos iconoclastas conseguiria digerir o longa. Portanto, qualquer crítica ao trabalho de Meirelles nesse sentido, seja em relação ao “excesso” de sujeira ou de realismo, ou então em relação às cenas de estupro, é, antes de mais nada, exercício de pura injustiça. O curioso é que, como já é sabido, o filme levantou diversas críticas, porém em linhas diversas: para uns, o filme peca por faltar com fidelidade diante da “estatura” da literatura de Samarago; já outros reclamam que o filme falhou por não alçar vôo próprio, por não se libertar da adaptação. Percebo um típico ranço conservador que tem por tradição perseguir adaptações de grandes textos literários, ainda que, estando “cegos”, grande parte da crítica ainda é totalmente incapaz de definir um alvo em comum – o que demonstra uma generalizada falácia em sua argumentação.

Neste sentido, acredito que o filme, mais do que qualquer outro, abre a discussão sobre a questão da oralidade em meios distintos: até que ponto há liberdade de expressão e aceitação do público na arte do cinema em relação à tradição escrita? Por que será que o discurso audiovisual, ao levar para a tela as mesmas situações que são relatadas no livro, pode gerar reações revoltosas e adversas ao passo que o mesmo não acontece quando o leitor esta diante do texto escrito? Penso no fato de a oralidade em imagem e som estar hoje mais persuasiva que a escrita, uma vez que quando no papel lhe parece inofensiva e distante, porém na tela, com sua verdade aparente, lhe pareça insuportável.  É algo para se discutir. O entrave pelo qual passou Meirelles me traz a lembrança de uma famosa situação semelhante. Coincidentemente, em 1940, lá estava um grande diretor de cinema (John Ford), fazendo a adaptação do clássico de um grande escritor (John Steinbeck), da mesma forma um prestigiado autor - ganhador do prêmio Nobel, sendo que este romance em especial ainda lhe garantiu o Pulitzer. Tratava-se da adaptação para as telas de As Vinhas da Ira. Na obra literária, um personagem miserável, arrasado e completamente faminto sacia sua fome ao amamentar-se no seio de uma mulher desconhecida, uma recém-mãe. A imagem era forte demais para um discurso audiovisual, e por conseqüência Ford teve uma “dor-de-cabeça” daquelas quanto a inserção da cena no filme – que infelizmente acabou ficando de fora. Mesmo 68 anos após este acontecimento, o cinema ainda tem de vivenciar impasses dessa natureza.

Deixando a polêmica de lado, vamos ao enredo. Apesar de toda a carga dramática, oscilam momentos de extrema graça e outros que levam o público a encher os olhos de lágrimas.  Muitos na sala de cinema caíram na gargalhada em diversos pontos, como quando o médico (Mark Ruffalo, em tocante atuação), mesmo no seu estado de cegueira tenta, completamente desnorteado, separar a briga de outros dois desnorteados cegos briguentos. Mas existem momentos onde é difícil não se sensibilizar, como no primeiro momento em que a personagem de Julianne Moore começa a chorar, isolada no canto direito do plano, iluminada em meio à escuridão, carregando o fardo da culpa por ser a única que ainda vê.

É interessante pensar o que a cegueira significa no contexto da obra. A deficiência leva os personagens a estarem confinados naquele reduto dos loucos em que se transformou – que em certas situações mais parece o sanatório de O Estranho no Ninho. Curioso notar que, mesmo em uma situação de relativamente poucas pessoas em relação ao universo, os problemas globais se manifestam mesmo em pequena escala. Não é preciso mais que meia dúzia de seres humanos juntos para ver aflorar todo o lado sórdido do homem: lá estão o crime organizado, a corrupção, a violência, o machismo, o racismo, a ganância desmedida pelo poder e pelo dinheiro. Nesse sentido, fica evidente, pelo menos de acordo com minha interpretação, de que a cegueira é a própria auto-destruição, a própria miséria que causamos a nós mesmos, é o fascínio pela perversão. É a velha história do “homem é o lobo do homem” novamente em forma de alegoria. Como bem define o diretor no blog, “ao perder a visão, os personagens fazem o percurso da desumanização, passam a se mover pelo instinto de sobrevivência e suas vidas se resumem a comer, transar, defecar. É só o restabelecimento das relações amorosas, do afeto, do reconhecimento do outro que lhes dá a estrutura para reconstruir suas vidas e se humanizarem novamente”. No momento de virada deste quadro negativo, ocorre a passagem marcante quando a chuva vem para lavar a alma de todos, uma chuva que traz a redenção – não por acaso está vem por terra logo após vermos a imagem de Jesus Cristo vendado. Não era uma chuva de sapos, é verdade, mas senti um tom bíblico no ar naquele instante.

Quanto à direção, de forma sutil, a narrativa é incrementa com toques brilhantes, próprias do meio cinema, escolhas que fazem da linguagem deste filme um espetáculo à parte. Emocionou-me o momento em que o personagem “do tapa-olho” (Danny Glover), em reunião na prisão de quarentena, liga o radinho e sintoniza uma canção, atendendo ao pedido da “moça dos óculos” (Alice Braga). A música eleva-se a uma catarse coletiva para o grupo de cegos ali reunidos. Aí é que entra uma escolha genial: a música, que inicialmente está lá em cena, ou seja, no espaço diegético, vai gradativamente tomando conta do espaço extra-diegético, ocupando o espaço que cabe à trilha incidental. Vejo este recurso como se a sala de cinema passasse a fazer parte daquele cenário, estabelece um elo entre “cá e lá”.

Se você reparar na obra de Meirelles como um todo, irá notar uma série de elementos de linguagem em comum e que marcam presença neste último filme, como, por exemplo, a já citada preocupação com a verossimilhança. Em Cidade de Deus, entre outros procedimentos a fim de garantir mais realidade, o diretor havia optado pela utilização de não-atores para determinados papéis, e sim pessoas já devidamente inseridas no contexto da obra. Numa opção assim existe, é claro, um elo com a linguagem documental, mas graças a esse modo de particular de encarar a atuação, Meirelles proporciona mais possibilidades para quem está dando vida ao personagem (seja profissional ou não). Desse modo, eleva a ficção cinematográfica a um patamar de maior liberdade criativa (o que surpreende positivamente os atores), sobretudo de maior autonomia do cinema como arte independente de rígidos roteiros e marcações. E essa característica de sua direção prevaleceu mesmo em Ensaio Sobre a Cegueira. O que remonta não só certa tradição do cinema brasileiro, mas principalmente os grandes clássicos do cinema do período neo-realista na Itália (pós-1945), como no também urbano e caótico Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini. Há ainda, naturalmente, muitas outras características em comum entre seus filmes. Entretanto, as similitudes são reflexo não somente de um modo de atuação, mas também no modo de filmar e até mesmo na temática dos longas. Em relação a esta última, foi crescente na mídia uma tentativa de enquadrar a obra de Meirelles como trilogia, algo que está bem na moda.

Outro dia, assistindo ao Jornal da Globo, a repórter dizia que um determinado crítico internacional havia dito que o filme encerrava uma trilogia sobre a fragilidade do ser humano. Pensei: céus, isso é genérico demais! Ficou inquietando-me sobre o que, de fato, seria a trilogia de Meirelles – se é que há sentido em pensar seus filmes dessa forma. Tempos depois, estava lendo um texto da autoria do cineasta americano Peter Bogdanovich sobre os filmes do mítico diretor austríaco Fritz Lang, que partiu da vanguarda do expresisonismo na Alemanha dos anos 20 para uma bem-sucedida carreira nos EUA, tendo seu auge no “urbano e caótico” Metrópolis, de 1927. Pois bem, em seu texto, Bogdanovich sintetizava a obra de Lang como “a luta do homem contra as forças que pretendem aniquilá-lo”. Associei imediatamente a descrição de Bogdanovich à filmografia de Meirelles: tráfico de drogas em Cidade de Deus; testes ilegais da indústria farmacêutica em O Jardineiro Fiel; a cegueira em Ensaio Sobre a Cegueira. A diferença maior é que aqui cabe a você completar a obra, ou melhor, desvendá-la.

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