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Críticas

Cineplayers

Fato e ficção.

5,5

Recentemente, ao assistir A Troca (Changeling, 2008), de Clint Eastwood, uma dúvida me ocorreu no exato instante que a projeção acabara: ao se basear em fatos verídicos, o que é mais importante, se prender à veracidade ou à ficção? Essa indagação me tomou por decorrência de que, naquele filme, mesmo inspirando em uma história real, o diretor optou por excluir certos pontos que, apesar de serem importantes para a compreensão da trama (por exemplo, a mãe do serial killer, que, segundo consta, o ajudava a cometer as barbaridades), não abalaram a essência da mensagem que a obra quis transmitir. Pus esse questionamento em observação até que vi, finalmente, Dália Negra (The Black Dahlia, 2006) de Brian De Palma, que gira sua narrativa em torno do famigerado assassinato de Elizabeth Short, em 1947.

Mesmo sabendo que o trabalho de De Palma não ia de encontro com o homicídio em si, mas com uma ótica sobre todo o universo que cercava aquele mistério, uma vez que o caso, até hoje sem solução, funcionou somente como inspiração para James Ellroy escrever sua obra literária, não deixei de amargar a decepção quando vi que tudo se distanciava bastante - até mais do que eu havia imaginado - do acontecimento, da jovem em questão, cujo próprio título do filme carrega a notoriedade de sua tragédia. Ver ambas as obras nutriu mais o pensamento que eu havia formado, pois de um lado havia um filme que não se prejudicou ao “desobedecer” a veracidade, e de outro havia o que tropeçou justamente na hora de se afastar da verdade - apesar de saber que sua intenção nunca fora a de contá-la. Mesmo sendo filmes tão distintos, eles trouxeram à tona essa indagação que ganhou ainda mais forma e proporção durante a exibição de Entre Segredos e Mentiras (All Good Things, 2009), que se baseia na história de Robert Dunst, um milionário que foi dado como principal suspeito do desaparecimento de sua esposa Kathleen McCormack, no início da década de 1980.

Durante a projeção, é possível sentir uma forte inclinação ao tom documental (visto também que esse é o segundo trabalho no cinema de um diretor que só havia se aventurado nesse gênero até então), um modo de não firmar um passo além do que permite a verossimilhança, seja para manter a imparcialidade com relação aos eventos ou mesmo para selar compromisso com a verdade nua e crua. De uma maneira ou de outra esse lado para o qual o filme pende, o faz distanciar-se emocionalmente do público. Não sentimos qualquer intensidade no relacionamento de David e Katie (nomes alterados de Robert e Kathleen), e mesmo sendo nitidamente sinceros os esforços de Ryan Gosling e Kirsten Dunst, aquelas figuras só conseguem nos transmitir indiferença. Aliás, essa apatia compreende não somente os personagens citados, como todos os demais envolvidos na narrativa. Eis que a velha questão surge novamente: seria mais cabível ligar-se puramente aos fatos ou dar mais importância a criação, mesmo essa vindo a alterar a realidade dos acontecimentos?

Isso naturalmente é relativo à proposta de cada obra, às suas intenções ao abordar determinado episódio e, especialmente, o que ela pretende nos repassar com isso. Entre Segredos e Mentiras opta por fincar os pés na autenticidade e exatidão de tudo que se põe a apresentar, no entanto essa alternativa se mostra problemática, pois ao passo que o filme consegue estabelecer uma narrativa bem estruturada (ainda que seu ritmo despenque em dados momentos), o texto se perde em meio às lacunas inevitáveis deixadas pelo próprio evento, isso porque o caso Dunst nunca fora plenamente solucionado. E se encontra problemas para responder e desatar algumas tramas intricadas naquele meio, tudo piora quando notamos que a fita jamais se entrega ao estudo de seus personagens, nem ao menos ao trabalho em sua confecção dramática, sendo esse um elemento imprescindível para um projeto desses. Quem é realmente David Marks? O que seu pai fez, na verdade, para culminar no suicídio de sua mãe? Aliás, quem seria o pai de David? Somente um homem frio que não dava atenção a sua família e tinha uma relação conturbada com a esposa? Ou algo a mais que isso? São perguntas incessantes, descarregadas a todo o momento por um roteiro que não poupa esforços para entregá-las, mas se intimida no instante de respondê-las.

Há de se admirar o desempenho do elenco que, mesmo preso a papéis limitados (ou melhor, mal explorados), se sai bem dentro do possível. Enxerga-se na interpretação de Gosling uma dimensão a mais para o personagem que o roteiro em si não foi capaz de conferir; logo de início, David Marks é apresentado através de uma personalidade tímida, receosa, quase como uma criança assustada que mal sabe escolher as palavras certas, e à medida que o tempo se estende, o sujeito vai ganhando um semblante mais rígido, quase como uma metamorfose que transforma aquele inseguro rapaz que acabara de se casar com uma linda mulher em uma criatura hostil, que passa agir impulsiva e violentamente nas mais inesperadas situações. O mesmo pode ser dito de Frank Langella na pele de Sanford Marks, um homem preconceituoso - que abomina a idéia de que a esposa de seu filho possa ser uma simples aspirante à medicina - e calculista, que age com o máximo de frieza possível para com todos a sua volta (e isso é ilustrado na cena onde ele abraça, de modo indiferente, seu próprio garoto).

Ao se render unicamente ao fato em si, Andrew Jarecki deixou seu trabalho a mercê de lacunas e questionamentos sem solução. O que aconteceria se ele houvesse “inventado” os preenchimentos que faltaram? Se ele utilizasse a história somente como base para construir sua própria ótica sobre aquilo? Se, mesmo sem o auxílio de registros, ele houvesse apresentado o que precisávamos saber sobre a família do protagonista? A lealdade estabelecida com o factual poderia até ser quebrada, é verdade, mas iríamos assimilar melhor a trama, não é mesmo? São dúvidas consequentes da indagação que apresentei desde o início deste texto, que, mesmo não sendo respondidas, conseguiram alimentar ainda mais uma interessante reflexão. Coisa que o filme, propriamente dito, não foi capaz de fazer.

Comentários (10)

Júnior Souza | domingo, 23 de Outubro de 2011 - 23:36

Muito obrigado, Marcelo! 🙂

Patrick Corrêa | quarta-feira, 26 de Outubro de 2011 - 00:17

Ryan Gosling parece estar se esforçando para se tornar um dos meus atores favoritos...

😏

Rodrigo Torres | quinta-feira, 19 de Abril de 2012 - 07:38

Cada comentário desnecessário...

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