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Críticas

Cineplayers

O sacrifício individual de Gray.

8,5

Outra vez, Gray lança mão de seu naturalismo estilisticamente pesado para narrar mais uma história em que forças de opressão e libertação enfrentam-se a todo momento: o Êros e Tanatos clássico do cinema burguês, atento não exatamente a questões como “bem” e “mal” e “vida” e “morte”, mas antes prazer e castração. Desta feita, em Era Uma Vez em Nova York, somos chutados pra trás no tempo pra conhecer a via crucis de Ewa Cybulska, uma imigrante polonesa que chega na América e logo tem arrancada de si a sua irmã doente de tuberculose e para subsistir passa a ser explorada pelo cafetão Bruno.

Muito se diz de Gray utilizar-se da narrativa clássica não de forma referencial, não de forma revisionista, mas em um encontro com a linguagem moderna, com seus valores estéticos e temáticos partidos, ambíguos e pouco delineados. Pois nessa linha limítrofe entre o romantismo narrativo burguês de Griffith e narrativa character-driven sem pêndulo moral de Welles, o filme de James Gray promove um encontro, sempre conflitante, do embate entre classicismo e modernismo, entre a pretensão de narrar e a pretensão de se libertar-se e promover um afeto pictórico anterior à palavra, portanto, anterior à fabulação.

E essa fabulação tem o caráter explicitamente revelatório; antes de ser uma mitologia de Nova York, é um mito sobre Nova York, que antes de intentar revelar estruturas políticas e econômicas que teriam erguido a cidade assim como a conhecemos, vide Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2002) e sua extensa duração, desdobramentos e acontecimentos centrais da história novaiorquina, mas antes uma história sobre o sacrifício individualista, um entre muitos, que juntos formam uma cidade e sua “alma”, que funcionam não como avatares de uma macroescala, mas antes como peça destacada de um coral. Antes de se pretender abraçar Nova York com os braços, aqui se recorta Nova York. Não se erige aos nossos olhos, mas adentra no que já foi levantado, tal qual o título original, A Imigrante. Ou ainda o primeiro título pensado por Gray, Low Life – escória, ralé. Não observador e distante: Gray ainda se utiliza de um melodrama tradicional, que exige uma resposta emocional, cumplicidade do espectador, uma evolução dramática onde Ewa tem de lidar com as consequências de suas escolhas e das escolhas daqueles de seu círculo social.

Porém, como habita o limiar, esse melodrama estabeleicdo em um triângulo de afeto entre Ewa, Bruno e seu primo mágico Orlando pouco atende a uma demanda de antagonismo, ao menos, externo. Seus personagens são uma escória que não atende a uma demanda tradiconal de castração eterna contra felicidade eterna. O que passa a contar, então, é a temática de sacrifício que habita os filmes de Gray. Sacrifício pela subsistência, onde como acontecia em Amantes (Two Lovers, 2008) e Os Donos da Noite (We Own The Night, 2007), não se pode ter o melhor de dois mundos. Há de escolher, pelas condições extremas enfrentadas, ou sucumbir. Há a transformação moral, os horríveis castigos físicos, o afastamento afetivo, e uma obstinação por tentar viver, de buscar dignidade, de estabilizar-se e ser aceito como arte de uma nação nascente. Mas como o melodrama burguês ambiciona, sempre através da perda, da imolação, da degradação. Uma lógica de causa e efeito formulaica nos filmes industriais que vemos: decair para ascender. Ainda que a ascensão aqui seja apenas reencontro e fuga, a qualquer custo. É importante lembrar da falta de limites, pois seus protagonistas realmente estão dispostos a tudo para conseguir o que desejam, livrar-se da castração e buscar a vida. Vê-se tanto no comportamento leve de Orlando, na devoção à irmã de Ewa ou na patologia obsessiva pela imigrante por parte de Bruno. Não há norte moral aqui, nada apontado como a coisa certa a se fazer, nada é final. Como seus personagens deslocados, tudo nos filmes de Gray é transitório, e tudo transforma-se, rui ou cria-se por uma simples tomada de decisão.

A Nova York de Gray nasce em uma paleta praticamente uniforme de cores – tons pastéis e ocres predominam em nossa percepção, onde contrastando com os tons negros e escuros, cria-se um labirinto espacial confuso e pouco visível assim como a psique dos seus personagens com planos dentro do plano, espelhos que criam plano e contraplano e reenquadramentos criando trevas físicas em momentos cruciais de escuridão moral que transformam Ewa a cada momento que a luz volta a perceber a protagonista, um pouco mais identificada com o ambiente à medida que a história passa.

Feito numa época onde a imigração é uma questão central na política, Era Uma Vez em Nova York vem não como uma denúncia documental, mas uma crônica neoclassicista de viés inimista, restaurando linguagem para desconstruir nostalgia, com o romance melancólico e objetivo é refletido na evolução dos tons sombrios na fotografia, na busca pelas locações externas que dominavam o início do filme – um filme que começa em um porto, com a visão de costas da Estátua da Liberdade, embrenha-se dentro de quartos escuros, de camarins de ar viciado, debaixo de pontes pouco frequentadas – apenas para encontrar paz e resolução na dissolução, na fuga, na transformação, no mergulho no aberto. Os recursos expressivos do cinema, igualmente ambíguos, podem oprimir, mas também podem libertar. Da opressão, da escória, das patologias, e com a exposição à luz, cobrar comunhão com os próprios demônios para seguir em frente ou rumar à destruição.

Na nova via crucis de James Gray, o sacrifício da figura central não redime – também há de se contaminar, não julga – todos, unidos pelos tons da cinematografia, parecem pertencer ao mesmo barco e não arrebata – a resolução dela é a de esvanecer, tornar-se incógnita. Mas com o sacrifício, a figura vive. Em liberdade. Para decidir seu próprio destino, não mais obedecer. De forma efêmera e finita, tornar-se parte de um mosaico dentre tantas outras experiências. A narrativa de sacrifício, encerrada em nota pictórica, com um olhar de múltiplas perspectivas e incontáveis percepções projetando o futuro. Essa é a potencialidade que Gray gosta de explorar: em matéria de possibilidades, os indivíduos são infinitos, como a terra que habitam.

Comentários (9)

Nilmar Souza | quarta-feira, 24 de Setembro de 2014 - 17:01

É só o melhor filme de 2013. Linda crítica.

Pedro Tavares | quinta-feira, 25 de Setembro de 2014 - 15:50

Briga feio com Cães Errantes pelo topo da lista de melhores filmes do ano.

Guilherme Santos | sexta-feira, 26 de Setembro de 2014 - 22:20

Não vejo nada de mais em James Gray e seus filmes

jorge lucas | terça-feira, 20 de Outubro de 2015 - 20:53

James Gray deveria ser nome constante no Oscar, em vez do David O. Russel

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