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Críticas

Cineplayers

A singela narrativa visual de James Gray em um dos melhores filmes do ano.

9,5

Há algo muito particular nas imagens concebidas pelo cineasta James Gray, não menos neste que é seu mais recente longa-metragem, Era uma Vez em Nova York. Seria fácil resumir seus planos como apenas belos ou pitorescos, sendo que muitos chamam a atenção por motivos diferentes. Também não cabe o argumento da significância exclusivamente, pois muito do que torna a decupagem de Gray tão excelente é sua habilidade de direcionar a narrativa com a efemeridade de um gesto ou de uma expressão. Em suma, cada elemento em cena é uma ferramenta estética em diversos níveis, nunca simples arroubo. E, apesar de tudo isso, não é pela complexidade que o diretor arrebata, mas, sim, pela singeleza.

O quadro que abre o filme (uma silhueta de chapéu a encarar a Estátua da Liberdade, turva à distância) já ensaia uma evocação em diversas frentes, metafóricas, imagéticas e narrativas. Porém, o importante a destacar é o rigor redutivo, a disposição econômica das peças que formam essa primeira impressão. Até então, pode-se argumentar que a obra apenas dissera aquilo que está presente nesse plano, e seu convite à reflexão é um desdobramento não de uma patente e ativa construção do quadro, mas do quase ordinário minimalismo da composição. Uma extensão do cinema radicalmente romântico de Amantes, filme igualmente crédulo na potência expressiva de cada uma de suas partes.

Mantendo a comparação com a obra anterior de Gray, aqui temos um romantismo inegável, mas não mais assimilado como mote. Se Amantes tinha (dentre muitas) a distinção de ser nada menos que um romance romântico sobre romantismo, Era uma Vez em Nova York assimila a estética romântica para uma trama muito mais abrangente. É uma alteração perceptível, até estranhável, particularmente pelas tendências melodramáticas da trajetória de Ewa Cybulska (Marion Cotillard).

Vale destacar que, já nas primeiras cenas, o filme se anuncia como melodrama sem reservas, estabelecendo dois dos conflitos centrais da trama com situações dramatúrgicas clássicas. Batidas, se é necessário dizer. Mas esta é apenas a apresentação da honestidade que fundamenta toda a obra, de tal forma que pode ser considerada sua palavra de ordem. Os três personagens centrais podem ser contrariados, coagidos ou censurados, mas sempre retornam à sinceridade, dilacerante que seja. A dócil Ewa raramente se abstém de expressar seu rancor – dualidade que a grande Cotillard abarca com incrível naturalidade, diga-se –, mas, mesmo assim, em dado momento se vê compelida a fazer uma confissão a um padre, para expor ainda mais suas angústias.

O mesmo vale para Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), o “empreendedor liberal” que gerencia a “carreira” da imigrante polonesa. Se, por um lado, suas emoções afloradas o tornam quase uma caricatura de si próprio, ainda resta um sentimento recalcado, aflorado de forma inofensiva e patética na ebriedade, que em verdade é sincero até as últimas consequências. Sua profissão, por outro lado, comunica o reverso da honestidade, já que o personagem, ao apresentar as mulheres de seu show, e apenas então, projeta uma gritante textura de falsidade; aquela prevista pelo acordo tácito entre os dois lados do entretenimento adulto.

É Orlando (Jeremy Renner), primo de Bruno, quem fecha a trinca de personagens centrais. (Afinal, a irmã de Ewa conta menos como personagem do que sua ausência.) Ele é marcado por não refrear comentários, atos ou posturas, numa persona que Renner enche de audácia jovial – e, ocasionalmente, de um assustador sadismo infantil. Seus principais conflitos derivam precisamente de sua da tentativa de esconder as rusgas que teve com o parente no passado e projetar uma camaradagem falsa. Sua introdução é inclusive um ótimo exemplo de como Gray investe nas imagens para que elas sejam precisamente o que devem ser. O ilusionista surge com um número em que levita no meio do palco, mas a câmera não só evita delatar o truque, como o enquadra de forma deslumbrante. O compromisso, afinal, não é com a verdade, mas com as emoções reais que cada cena deve comunicar, e, nesse instante em específico, é de ingênuo assombro que Ewa se encontra repleta.

Assim como faz com seus personagens, o cineasta evita a dissimulação em sua mise en scène e até mesmo busca ativamente a honestidade intelectual. O corte seco para a flor murcha e manchada que Orlando deu para Ewa é o tipo de metáfora que soaria afetada em muitos filmes estética ou conceitualmente mal resolvidos. Neste caso, porém, ela se torna arrebatadora, graças a uma carta de intenções inequívoca, e, claro a um roteiro (escrito por Gray e Richard Menello) que utiliza tal recurso de forma rica e expressiva para os personagens que representa.

Unindo as duas mais pungentes qualidades do filme, o uso recorrente de espelhos na encenação não cai na armadilha do óbvio ou do sobressalente. Mesmo deixando de lado a engenhosidade com que Gray os emprega como elementos imagéticos e metafóricos, é em sua mais básica natureza que o diretor se apoia: a possibilidade de se ver um lado de outra maneira imperceptível. A expressão ébria, descentralizada de Ewa no backstage ou ainda o afastamento de Bruno no inesquecível plano final, são exemplos primorosos de como essa simples imagem dupla carrega profundos significados.

Daí decorre o soar tão estranho da trilha sonora de Christopher Spelman. Desde os primeiros minutos de projeção, as notas parecem entrar em discordância com as cenas; melodias que vão do esperançoso ao glorioso mesmo em momentos de indisfarçável brutalidade emocional. É de se refletir que esse tom seja o elemento mais dissonante do conjunto. Não só essa aparente incongruência faz ecoar os persistentes desejos de redenção dos três personagens principais, como os assume como sentimentos sinceros, íntimos e invulneráveis, pois distanciados da ríspida realidade. Não se deve ignorar, também, que essa separação tem paralelo na primeira imagem do filme – enquanto a Estátua da Liberdade, ilhada e afastada, é símbolo de um país de oportunidades, a música deslocada representa a natureza paradoxal da esperança.

Uma última imagem para ilustrar a riqueza da obra: encolhida num canto do enquadramento, Ewa recebe uma cossa enquanto a câmera fica tomada de retratos do que aparentemente são os antepassados de Bruno. Suas histórias, embora nunca reveladas, se fazem presentes como narrativas que levaram o personagem até lá, em misteriosa e magnética comparação com a vida de Ewa. Com cada plano e cada um de seus elementos tão repletos de significado, apuro visual, potência narrativa e concisão, não é por menos: Era uma Vez em Nova York sem dúvida deve ser assistido mais de uma vez.

Comentários (1)

Vinícius Cavalheiro | quarta-feira, 01 de Outubro de 2014 - 14:26

Sensacional! Bem-vindo, Pedro! Bom te ver por aqui 😁

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