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Era uma vez na América

(Once Upon a Time in America, 1984)
8,9
Média
729 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A Fábula de Leone.

10,0
Espaço e tempo. Esses são dois dos elementos que o cinema apresenta para construir as narrativas pautadas por imagem em movimento, o que convencionou-se a chamar por misé-en-scene, “o que está na cena”, o modo como quem dirige um filme consegue construir com esses elementos a narrativa e sua atmosfera. A forma como trabalhou esses dois elementos é a marca estilística que Sergio Leone tornou singular em sua filmografia.

O italiano foi um dos pioneiros a se debruçar sobre o gênero do faroeste e fundamentar a base do “spaghetti western”, a versão da terra da bota para a característica ambiência americana, palco de um sem número de conflitos reais e fictícios cristalizados no imaginário popular. Não apenas a velha moralidade da indústria americana foi despida, com as histórias agora exagerando na violência gráfica, nos personagens ambíguos quando não amorais e no clima geral de decadência, mas Leone também mexeu com a leitura sensorial do que era captado pela câmera, manipulando a espacialidade e a temporalidade ao seu próprio gosto.

Era Uma Vez no Oeste (C'era Una Volta il West, 1969) iniciou uma trilogia que prosseguia a missão de revisar a história americana após a Trilogia dos Dólares revisar a mitologia do faroeste, onde Leone se aprimorava filme a filme na escultura do tempo - a contração e dilatação servindo ao efeito dramático. Por mérito, pode-se chamar Sergio Leone do mais “operesco” dos diretores, compondo e regendo seções de expectativa, explosão e violência, organizando cada pequeno detalhe para atingir uma potencial catarse do drama.

Após a segunda parte da trilogia, Quando Explode a Vingança (Giu La Testa, 1975) onde o diretor abordava a Revolução Mexicana para falar das ideologias explodindo no mundo setentista, atrelando a intimidade e memória dos personagens em meio a um mundo caótico em pé guerra, Leone demoraria mais de uma década para lançar o encerramento de sua “Trilogia da América”, seu canto de cisne e a obra que muitos tem por sua magnum opus: Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984).

O título, como acontecia no primeiro filme da trilogia (e uma das traduções do segundo filme, “Era uma vez a Revolução”), confere todo um caráter de fábula à obra, reforçando a intenção de Sergio Leone de não se ater necessariamente à história real em si, mas à nossa percepção dela - como todo olhar é necessariamente um recorte, um ponto de vista de onde se parte para chegar a uma conclusão, ou resumindo, uma construção dramática. Agora o italiano se encarregava de falar sobre um cenário mais contemporâneo, entrando no gênero dos filmes de máfia e gangsteres, abordando a formação social urbana do continente norte-americano após propor o descortinamento de suas raízes mais remotas no consagrado Velho Oeste.

Logo nota-se o anacronismo de Leone ao abordar a tradicional narrativa de ascensão e queda na vida marginal: Era Uma Vez na América, em sua tal construção dramática, tem tanto de épico de fundação quanto de romance de formação. O filme existe principalmente na mente de seu protagonista, o mafioso judeu David Aaronson, o que torna uma obra basicamente sobre consciência e memória, essas duas temáticas afetando diretamente sobre a estética e narrativa – voltando ao passado cheio de lacunas de David, apelidado de Noodles, que no tempo atual volta a entrar em contato com sua traumática vida pregressa - todos os seus amigos de gangue foram emboscados e mortos após uma ligação sua, uma de suas grandes traições que o fez fugir de Nova York para salvar a própria vida.

Leone lança mão da técnica narrativa in media res, iniciando suas múltiplas narrativas em um ponto avançado da história - Noodles entrando numa casa de ópio, consumindo a droga, lembrando dos eventos traumáticos que o levaram até ali, para então retornar de fato ao início da história e explicar as origens de seus personagens centrais, com o enigma da vida de Noodles atravessando décadas; 1920 e os anos de infância humilde e delinquência juvenil, 1932 e o auge da vida criminosa – David sai da cadeia adulto após 12 anos de encarceramento por vingar-se da morte de um amigo de gangue e crescido, forma uma gangue com seus amigos de anos atrás; e 1968, ano em que Noodles recebe uma carta relativa à ossada de seus amigos e volta para Nova York para investigar quem descobriu sua localização.

A relação entre desejo e morte é uma constante desde os primeiros anos de vida da gangue de delinquentes, chefiada principalmente por Noodles e Max, que sujarão cada vez mais as mãos de sangue com o passar dos anos para ascender no mundo criminoso e criarão uma rivalidade na vida pessoal e na vida de crimes. A puberdade confunde o desperto do desejo, os pequenos crimes, o envolvimento com figuras locais e as primeiras grandes traições na ascensão pelo poder, causadora das tensões externas e internas no grupo e sua dissolução traumática.

Um elemento constante no cinema de crime como catalisador de reviravoltas, a traição ganha conotação especialmente íntima nas extensas mais de quatro horas de Era Uma Vez na América. A disputa pelo poder afeta a forma com a qual Leone direciona o olhar e a atenção do espectador, com a lealdade e a ganância mostradas através de grandes e pequenas ações – marcante, por exemplo, a cena em que Noodles afirma liderança sobre a gangue fazendo todos aguardarem sua resposta enquanto o mesmo mexe uma colher dentro de uma xícara produzindo um incômodo ruído metálico. A câmera se aproxima dos rostos progressivamente com o passar dos cortes, o som sangra entre os planos, o espaço se aperta, o tempo parece não passar; as relações estão estabelecidas quase sem diálogo. Um dos muitos exemplos de como forma e narrativa são indissolúveis.

A tônica estético-narrativa de Leone, organizada de forma a refletir a memória e a consciência do personagem ponto-de-vista antes de ser explicada é filmada, mostrada ante a câmera, como meio de tornar o personagem verossímil, quebrando a linearidade narrativa para definir constantemente o caráter de Noodles, fadado a uma vida de traições. Aliás, até uma redundância em inglês; character é uma palavra que pode significar tanto o personagem quanto a natureza única e inescapável de um indivíduo. Um personagem dramático funcional por excelência sempre está condenado por si mesmo.

O desenvolvimento do protagonista em toda a sua ambiguidade é o exercício da contemplação da intimidade pela longa duração do filme, onde Leone destrincha de maneira despudorada cada pequeno evento de formação, vide o interesse que ainda jovem Noodles demonstra por uma garota chamada Deborah, observando-a e tentando observá-la várias vezes em sua intimidade. Anos mais tarde, já adulto, reencontra a mulher e a convida para sair e no encontro, após as tentativas de impressioná-la e seduzi-la fracassarem, um descontrolado Noodles a violenta. Anos depois, voltando a Nova York sem nada e à procura de completar lacunas de seu passado, a reencontra como agora uma famosa atriz e a única conexão com os dias passados.

Esses três momentos mostram de maneira didática a proposta de construir efeitos dramáticos em cima da apresentação de fatos para causar sensações audiovisuais potenciais. A atmosfera de cada sequência é particular e distinta; temos as grandes profundidades de campo nas cenas voyeuristas, transformando as locações em ambientes imensos, onde concretizar o desejo torna-se algo distante, e os contraplanos da vista de Noodles compõem leituras sempre longas, nos forçando a contemplar junto, com a proximidade só sendo usada para forçar a tensão e o risco de ser pego e os pequenos momentos que propõem algo essencialmente cinematográfico, a valorização da efemeridade, o que praticamente inexiste na segunda sequência, já em 1932: a construção da cena, antecedida pelo reencontro dos dois após a saída de Noodles da prisão, é guiada até pelos rituais de sedução, exagerando nas roupas finas e cenários luxuosos, com uma referência até melodramática em seu close dos dois dentro de um carro com as suas ruas inseridas em sobreposição. Referência logo quebrada pelo  momento do estupro, de um realismo cru de um plano e contraplano em grandeza média, nunca desviando para fora dali e criando a claustrofobia necessária.

Desemboca-se em 1968, na melancolia e na culpa do presente, onde Noodles reencontra a agora famosa atriz e plano e contraplano se unem em um único reflexo de espelho, que revela a face de Deborah na luz enquanto Noodles surge das sombras. A relação de chiaroscuro da cena dá conta em alguns poucos momentos do tom que guiará a cena e do que a precedeu; Leone permite assim a inferência do espectador na leitura sensorial sugerida desde o primeiro minuto pelos artifícios estéticos utilizados na narrativa. Confia-se na nossa dedução a partir da interpretação de códigos: músicas, ruídos, transições e raccords.

Esses códigos constantes lembrados pelo filme funcionam como as rimas audiovisuais de Leone, como na primeira sequência, com Noodles encontrando as próprias lembranças em um sonho induzido por ópio, com um som insistente de telefone guiando as múltiplas cenas, onde conhecemos o passado conturbado e violento do protagonista em alguns poucos momentos, com o som do aparelho marcando a presença do mundo real que impede o delírio de Noodles. A relação da triste música de Ennio Morricone, presente no momento do assassinato de seu amigo de juventude e no seu retorno à câmera mortuária de seus amigos em 1968, com os acordes iniciando e se interrompendo com o abrir e fechar da porta, simbolizando a culpa de um Noodles de olhos marejados, com a sugestão do afeto musical o responsabilizando por seus atos; a música como a lembrança frequente da morte.

Essa trilha também está presente no momento que marca a fuga de Noodles para Buffalo na década de trinta na estação de trem, tão tipificada e idealizada em seus cenários e figurinos dos funcionários que parecem ser antes uma memória nostálgica do que uma recriação. O seu retorno a Nova York em 1968 funde a trilha de Ennio com uma versão orquestrada de Yesterday dos Beatles, onde os vocais incompletos por cima do arranjo de cordas casam o faux raccord, onde o adulto Noodles aproxima-se do portão em plano geral e o corte para o plano próximo revela o personagem já velho, com o pôster típico de cabaré do primeiro plano geral antes do close dando lugar logo no novo plano geral a uma típica decoração da era hippie, com funcionários já bem desleixados visualmente, já dizendo a Noodles que seu retorno não terá o glamour da ideia; logo depois é o que acontece, com um pôster retrô de Nova York se fundindo com a recriação da cidade nos anos vinte. Cada pequena figura ganha um mundo por trás de si com as lentes de Leone.

Leone confia ao espectador a tarefa de organizar em sua cabeça os diferentes períodos significativos de vida de seu protagonista, conferindo a noção que Noodles é tridimensional, capaz dos atos mais horríveis e de sentir o remorso mais profundo - violento como o mais ganancioso e abusivo gângster, silencioso e melancólico como o mais velho dos mafiosos; adolescente delinquente, adulto perigoso, idoso misterioso; identidades tão diferentes confinadas todas no personagem de Robert De Niro, que é a metáfora do título, onde o passado recente tem sua nostalgia arrasada com uma obra de vários tons, oscilando entre a brutalidade, a melancolia e o delírio o tempo todo, buscando a oportunidade na fabulação do livro original, “The Hoods”, a autobiografia do ex-gângster Harry Grey, para contar o seu último “Era uma Vez”, uma fábula visual contemporânea, avatar do inconsciente coletivo, onde despreza a linearidade na mescla de diferentes épocas e evidenciando as rimas que voltam o tempo todo como uma repetição cíclica de situações sempre consequenciais e similares, como se nos afirmasse: esse é o desmanche de um mito.

Sendo a fábula uma ficção alegórica que visa representar determinados aspectos da realidade, o último ato da última obra de Leone é mais uma vez descortinador, onde a narrativa cristalizada da decadência do vilão fora-da-lei ganha sua contestação na trama de Max, que enganou Noodles fingindo sua morte e criando uma nova identidade, o Secretário Bailey, homem bem sucedido na vida pública, que em um estratagema com policiais corruptos traiu todos os seus companheiros. Assim como Noodles, quando confrontado, o personagem de Max busca a expiação oferecendo a vida para o antigo colega. Quando o mesmo nega e dá as costas, Leone mais uma vez remaneja a misé-en-scene para brincar de realismo mágico, com um faux-raccord fazendo Max sumir quando um caminhão passa à sua frente. As presenças fantasmagóricas somem todas e deixam o protagonista para viver sua vida, com o gênero então já terminado de uma vez por todas; esse último ato recusou por si qualquer pecha de gênero por ambiência ou tradição, sendo um longo epílogo onde só resta o drama fúnebre, lento e contemplativo.

É quando o filme dá sua última nota melancólica: o final é com Noodles, chapado de ópio na década de trinta, delirando sorridente e sem interrupções como acontecia no início, perdido em tempos mais fáceis, onde a memória era uma cortina, não uma janela, tampouco um espelho. O artifício de congelar o movimento e nos obrigar a encarar a imagem estática, última ferramenta de Leone na manipulação do espaço-tempo cinematográfico; a figura que representava a ilegalidade da América do Norte, descoberto e revisto, antes de ser enterrado de vez com os mortuários O Poderoso Chefão 3 de Coppola e O Pagamento Final de Brian de Palma, não é mais um fragmento desencontrado, mas está suspenso acima das narrativas. É a tal valorização do efêmero, agora em close, agora livrando-se das noções de início, meio e fim, existindo por si, em algum canto das décadas e do mapa, concreto através das ferramentas que moldam o indivíduo e o cinema: o espaço e o tempo.

Comentários (7)

Alexandre Koball | segunda-feira, 21 de Setembro de 2015 - 13:24

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Pra poucos mesmo. Crítica necessária.

Cristian Oliveira Bruno | segunda-feira, 21 de Setembro de 2015 - 13:33

Obra-prima incontestável!!!! Um verdadeiro épico do cinema! Brum cada vez mais brilhante analiticamente. Que. prazer foi ler este relato. Parabéns, como sempre.

Ravel Macedo | segunda-feira, 21 de Setembro de 2015 - 18:25

Caralho, que texto.

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