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Críticas

Cineplayers

Um Loach fácil ainda é Loach, e ainda é fácil.

6,5
É impressionante o quanto Daniel Blake tem traços de personalidade que o assemelham a Clara, a já mítica personagem de Sonia Braga. Ambos são pessoas com ligações profundas com o passado e o que ficou para trás. Clara ouve sua coleção de vinis, Daniel ainda tem acesso às cassetes de antigamente; Clara tem um senso de justiça forte e Daniel é um solidário humanista. Ambos estão no limite das suas forças numa batalha sobre-humana contra o status quo da injustiça tradicional da sociedade moderna, e vão cada qual travar suas batalhas contra o autoritarismo das grandes corporações, que querem deleta-los do sistema humano.

Se encerram aí as aproximações entre o espetacular Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e o novo filme do cânone do cinema político inglês Ken Loach, Eu, Daniel Blake. Ah!, ambos competiram juntos no Festival de Cannes, mas festivais, prêmios, júris equivocados e decisões risíveis não terão vez nesse texto. Até porque a ficha corrida de trabalhos prestados de maneira exemplar por Loach começou a ser escrita nos anos 60, e aos 80 anos a lenha ainda está sendo queimada. Apesar da idade, raramente Loach leva mais de dois anos pra entregar novo produto, sempre com certa relevância. Sendo premiado em Cannes com frequência, Loach ainda espaço de diálogo com novas gerações de cinéfilos, mas talvez sua verve e sua parceria com Paul Laverty tenham já extrapolado a validade.

No seu universo sequinho e de mensagem muito cristalina a passar, a primeira hora da sua nova Palma passa com satisfação. Daniel Blake é um homem anacrônico e isso é pouco verbalizado, tirando as sequências onde ele precisa se colocar para autoridades. Ele entalha peixinhos de madeira nas horas vagas e essa sutileza nos leva diretamente para um tempo outro, de delicadeza generalizada, onde Blake exerce uma soberania plácida sobre todas as coisas. Quando surge a necessidade de utilizar os préstimos do governo e do seguro social, os entraves burocráticos e tecnológicos que surgirão em seu caminho farão esse homem lentamente crescer e absorver novas experiências a duras e injustas penas. Sua solidariedade latente já era notada na relação com seu jovem vizinho, e é realçada no encontro com uma mãe solteira que, como ele, também depende nesse momento do Estado para sobreviver. Juntos eles se unirão para resolver seus pequenos problemas práticos e dar força um ao outro para encarar os grandes problemas, do qual não depende só deles.

Uma pena que na meia hora final Loach pareça afundar sem medo rumo a um cinema apelativo e sem qualquer nuance, explorando uma espécie de 'coitadismo' que não cai bem consigo mesmo, nem com o filme, nem com Blake, jogando na vala a visão dura porém muito objetiva e acertada apresentada no início. O lado emocional e rasgado não seria um problema se não fosse uma deturpação da estrutura montada inicialmente pelo próprio Loach, que privilegiava o distanciamento e a elegância formal, cedendo espaço para um cinema arcaico calcado nas lágrimas fáceis. Isso se alia também ao recurso de "ex-machinas" extremamente pobres e deslocados, que não disfarçam em nada o intuito de fazer a trama andar apenas, sem qualquer lógica e sendo muito estúpido; reparem na cena do número de telefone jogado no chão.

Ainda que os protagonistas Dave Johns e Hayley Squires sejam excelentes e não tenham qualquer culpa frente aos rumos errados que o filme toma, suas interpretações também padecem quando da mudada de rumo do longa, se tornando óbvias e espalhafatosas graças à quebra de ritmo e ao descompasso de um roteiro que adere à dramaticidade extrema. Ainda que no cômputo geral o filme novo de Ken Loach seja um respiro frente às obras mecanizadas que ele vinha apresentando há algum tempo, e por isso talvez seja seu melhor filme em pelo menos 10 anos, ainda assim o suicídio cinematográfico que ele deliberadamente comete em busca do caminho fácil é suficiente para relegá-lo ao segundo plano de lançamentos de cinema da temporada, sem qualquer justificativa para algo além da atenção. 

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