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Críticas

Cineplayers

A precisão de um veterano.

7,5

Os interiores são o elemento fundamental do cinema de Bertolucci: isso é uma verdade tanto no seu grande clássico Último Tango em Paris (Last Tango in Paris, 1972) quanto em seu último e icônico trabalho, Os Sonhadores (The Dreamers, 2003). Quase dez anos afastados do cinema por problema de saúde não mudaram o diretor, ainda obsessivo com as mesmas temáticas que o levaram tanto ao topo do mainstream americano em O Último Imperador (The Last Emperor, 1987) quanto filmes polêmicos como La Luna (idem, 1979).

Citar todos esses filmes é fundamental para compreender o espírito que passa por cada plano de Eu e Você, a história de Lorenzo, um garoto que, mentindo para mãe sobre ir para uma excursão, se isola no porão do próprio, pretendendo ficar lá uma semana. O que poderia transformar-se numa rotina monótona é interrompido pela chegada de Olivia, sua meio-irmã, viciada em heroína, fotógrafa e à procura de um lugar para dormir e livrar-se da dependência. Em comum, além do pai, tanto o adolescente de catorze anos quanto a jovem adulta sofrem de tremenda distância familiar. Suas reações no início, um ao outro, demonstram suas inseguranças, suas frustrações e temperamento agressivo. E que, isolados naquele ambiente, se conhecerão um pouco mais.

O título em primeira pessoa denuncia o ponto de vista da história – a idade não impede Bertolucci de se aproximar das novas gerações e querer ouvir seus anseios que, mesmo trocando-se os ídolos, modernizando-se a tecnologia, metamorfoseando as ideologias, ainda sofrem de uma dificuldade de comunicação tão grande quanto antes. Percebemos aquele mundo através de Lorenzo, de quem a câmera praticamente nunca desgruda, e a quem acompanhamos constantemente ouvindo música nos fones de ouvido, utilizada de forma diegética – se ele é interrompido, também o somos. Ouvimos e vemos junto com Lorenzo. Olivia, o “você” do título, é quem quebrará o isolamento do garoto e, aos poucos, fazê-lo viver em função do outro.

Tal qual vários protagonistas de Bertolucci e de tantos outros da geração do diretor, Lorenzo mantém uma confusa e agressiva relação com sua mãe – o atrito verbal é constante assim como a desconfiança, refletida de forma onírica em momentos solitários. O mesmo com Olivia, irritadiça e agressiva devido ao vício, sentindo-se tão abandonada quanto o meio-irmão – se ele expressa sua vontade de isolamento através do porão, dos fones de ouvido e do temperamento antissocial, ela mostra os sinais de viver em um próprio mundo não apenas através do uso de drogas mas também por uma exposição de fotografias que fez certa vez, intitulada “Eu sou uma parede”, vontade de se tornar nula e una com o mundo.

Se dessa vez o elemento do sexo é posto em um degrau de menor importância, é pra falar da relação familiar de dois indivíduos perdidos e confusos sobre o papel social que lhes é conferido em um mundo cada vez mais mutante e esquisito, que jamais parece corresponder aos seus anseios. Lorenzo, progressivamente, com o aumento da abstinência de Olivia, terá que sair do lugar de onde se isolou, desbravar as ruas e transgredir. Aprender a se importar com outro o suficiente a ponto de ajudar, fazer companhia, e confidenciar. Pouco a pouco, o “Eu” e “Você” ganha a conotação de “Nós”, já que a dependência do outro, a existência em função do outro, é inevitável. Isso destrói a maioria dos personagens de Bertolucci – Brando, em Último Tango, afundara-se sem volta em suas angústias individuais. Os irmãos de Os Sonhadores, apesar de morarem no epicentro de onde Maio de 68 ocorreu, não conseguiam transgredir o âmbito familiar, sexual e espacial e ir às ruas lutar.

É aí que Eu e Você surge como uma amostra inegável de ser um autêntico Bertolucci; é antes a criação de um mundo à parte que seus protagonistas, apesar de serem os criadores, são expostos às próprias contradições, têm de encarar as próprias angústias, lhes é exigido uma hora rasgar o que separa o indivíduo da comunidade. É essa dor inicial de viver em comunidade, comum unidade, que é o grande tema de Bertolucci, que trata seus párias antissociais e alienados com o maior carinho do mundo.

O filme demora a dizer ao que veio; a estrutura episódica, apesar de já ter sido desenvolvida de maneira mais envolvente pelo mesmo em outras oportunidades, e afora vez ou outra cair em algum didatismo psicológico óbvio, acaba engatando de maneira cativante o suficiente para observar aquele porão escuro, cheio de sombras, música e pessoas famintas por contato. A sociedade não é algo uniforme e ideal. E Bertolucci, felizmente, ainda segue obsessivo em filmar o desajustado, o que está fora do padrão, um dos muito cacos que compõem um mosaico que ainda nos esforçamos para entender. Aos que transgridem a barreira da alienação, no caso do filme, é simbólica a recompensa: o som, a música, agora não mais individual e egoísta, mas agora compartilhado por Lorenzo, Olivia e o espectador.  Não eu e você. Nós.

Comentários (4)

Matheus Veiga | quinta-feira, 26 de Setembro de 2013 - 16:26

Sinopse interessante

Patrick Corrêa | sexta-feira, 27 de Setembro de 2013 - 08:11

Ótima crítica pra um filme que, infelizmente, não teve espaço no circuito comercial.
Bertolucci provou que continua em forma.

Adriano Augusto dos Santos | quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013 - 10:55

Cresceu ainda mais na minha cabeça depois de ter visto,é lindão mesmo.

O tempo passa,mas certas situações continuam existindo sempre.
Cinema me fez comprovar isso.

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