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Críticas

Cineplayers

Incursão de Truffaut em gênero incomum de sua cinematografia.

6,5

François Truffaut é reconhecido até hoje, por uma grande massa de especialistas e cinéfilos, como um dos maiores e mais transgressores gênios que despontaram dentro do universo cinematográfico ao longo do século passado. Poético, melancólico e nostálgico, seus trabalhos sempre receberam veneração e destaque, principalmente pela sensibilidade com a qual abordava certos traços e ânsias humanas e pelo grande apuro técnico que apresentava a cada nova produção – sendo que, juntamente com seus outros colegas de Nouvelle Vague, como Jean-Luc Godard, Alain Resnais e Claude Chabrol, desconstruia gradativamente o processo acadêmico de decupagem e de abordagens temáticas desenvolvido e estagnado em Hollywood ao longo das décadas anteriores.

Dentre seus trabalhos mais populares, este Fahrenheit 451 certamente é um daqueles que menos representa a estrutura do cinema do diretor, algo que, mesmo assim, não impede a obra de ser cultuada em diversos círculos de cinéfilos, que reconhecem seu primeiro projeto em língua inglesa como sendo uma das produções de ficção-científica mais importantes da história do cinema.  Baseado no aclamado livro homônimo de Ray Bradbury, a atmosfera pessimista da obra nos remete a um futuro distópico, onde bombeiros não mais apagam incêndios, e sim, ateiam fogo naqueles que são considerados os principais causadores da infelicidade humana: os livros, independente de sua natureza – tanto romances e biografias, quanto obras filosóficas ou sociológicas serão devidamente queimadas, num ardor de 451º na escala fahrenheit. 

É neste meio caótico que se encontra o protagonista da obra, Montag. Interpretado por Oskar Werner (que já havia sido dirigido por Truffaut no amargo Jules e Jim), Montag faz parte deste batalhão de homens designado a extinguir a cultura literária do dia-a-dia social – algo que, simbolicamente, representa também a repreensão intelectual por excelência, já que a leitura, apontada como sendo causadora da depressão sentimental, representa, na obra, não apenas a própria literatura, mas todas as artes que possibilitam o despertar intelectual, o desenvolvimento cultural, a liberdade de idéias. Ao conhecer uma professora desempregada, porém, o bombeiro acaba descobrindo também o prazer da leitura, entrando em um processo de dúvida quanto ao seu papel na sociedade e, principalmente, quanto à verdadeira necessidade da extinção de tais objetos.  

Retratando uma civilização fria e imersa em um verossímil pessimismo, Truffaut desenvolve um estado social caótico que não foge muito à realidade da década de 1960, na qual fora produzida a obra, nem muito menos à nossa – mesmo que o mundo já esteja livre da predatoriedade ditatorial encontrada em diversas nações durante aquele período histórico, que apontava veementemente para uma realidade bastante semelhante à abordada na obra. É uma situação alarmante, pois, diariamente, desfrutamos da liberdade sem nunca precisarmos nos preocupar com quaisquer formas de repreensão neste viés – o que, porém, não transforma a ambientalização da obra em algo muito distante, caso conciliemos a repressão do processo de degustação intelectual humano, representada na obra pela literatura, com a vigente situação social, na qual tanto se afirmam regras estrambóticas quanto se perde cada vez mais o prazer pela busca intelectual. 

Quarenta e um anos separam o lançamento de Fahrenheit 451 nos cinemas e o ano em que você lê este artigo. Quarenta e um anos e, enquanto escrevo este singelo texto, uma dúvida começa gradativamente a efervescer em minha mente: seria a realidade abordada na obra de Truffaut a resposta para a referida equação, com a qual encerrei o parágrafo anterior?  Estariam a atual conceitualização política e a perda da essência intelectual (quando trato sobre intelectualismo, não me refiro à inteligência humana, mas sim à degustação da própria arte, produto intelectual de um autor que serve à apreciação intelectual de um receptor) constituindo a massa para a futura produção deste bolo fermentado pela ignorância? Se a filosofia de um século é a realidade de outro, o que herdarão as gerações futuras de uma sociedade que, a cada dia, se perde mais e mais em conceitos crassos e em uma constante subordinação à comodidade do conformismo? 

A resposta pode muito bem estar neste filme, como, claro, também pode não estar. Independente disso, a atemporalidade das questões desenvolvidas a partir da narrativa de Truffaut, habitualmente questionadora e de cunho organicamente filosófico, é suficiente para que tracemos um equilibrado paralelo entre esta assumida distopia e uma pressuposição de sua futura concreticidade. E este forte despertar de questionamentos sociais, aliás, responde pela principal qualidade da obra, e corresponde ao título de grande expoente com o qual é agraciado dentro do universo genérico em que se assume - afinal, quiçá seja a própria atemporalidade uma das principais virtudes que podemos encontrar em uma ficção-científica (cujo melhor exemplo, intransferivelmente, é a obra-prima 2001: Uma Odisséia no Espaço, do genial Stanley Kubrick), pois obra alguma irá funcionar caso esteja datada, como é o caso da missa fúnebre 2010: O Ano em Que Faremos Contato

Emoldurando este verdadeiro capítulo de questionamentos, estão a inteligência e a sofisticação visual e narrativa do cineasta francês – que, ver por outra, neste caso, respondem também pelos principais deméritos do filme. Logo no segundo inicial da obra, já pode ser constatado o primeiro toque de gênio: os créditos de abertura, diferentemente do habitual, são narrados, não escritos. Eles estão lá, mas não podemos lê-los – uma herança lógica da condição retratada na obra, que só poderia ser exteriorizada por um diretor assim, de verve lírica e criatividade poética. A exemplar e referida sensibilidade aguçada, naturalmente onipresente na filmografia do diretor, é sentida ao longo de toda a narrativa, na qual Truffaut compõe bonitos planos que, como de habitual, exalam os princípios estéticos da Nouvelle Vague a todo o momento. 

Em Fahrenheit 451, Truffaut apresenta também a inclusão de uma característica até então inédita em seu cinema: o referencialismo a Hitchcock, do qual era fã confesso desde os tempos de crítico cinematográfico, na Cahiers du Cinéma (revista na qual escrevia ao lado de seus colegas de Nouvelle Vague, e que aparece em dado momento no filme sendo incinerada, em uma plano sublime). Fahrenheit 451 fora produzido em meio ao desenvolvimento de seu livro de entrevistas com o “mestre do suspense”, e essa imersão no cinema do “careca” fora visivelmente exposta na condução da obra – não apenas pela intensidade da trilha-sonora que pontua e embala as seqüências, composta pelo parceiro habitual de Hitch, Bernard Herrmann, mas também pelo estilo estético empregado a algumas cenas, ao modo de filmá-las e conduzi-las. 

Esse apelo visual hitchcockiano, às vezes, pouco se encaixa ao estilo essencialmente dramático de Truffaut. Não apenas no que tange à mixagem entre ambos, como também à realização. Truffaut pode ser um mestre, um verdadeiro gênio, mas, quando tenta filmar seqüências de maior ação, situações de grande movimentação na tela, acaba desnudando seu calcanhar de Aquiles, não alcançando um nível de tensão suficiente ou que ao menos convença, à moda de Hitchcock. Ademais, a composição estética da realidade em que a obra se desenvolve, relativamente datada (fato que aflora um paradoxo com sua brilhante atemporalidade temática), acaba deixando a obra com um visual levemente antiquado, mesmo que, diante de suas verdadeiras qualidades, o fato não represente grandes danos ao produto final. 

Em virtude da incursão em um gênero incomum em sua filmografia, bem como da existência destes pequenos defeitos técnicos e narrativos (ainda acredito que a obra não se satisfaz completamente a partir de sua metade, desenvolvendo de maneira menos empolgante o excepcional ato inicial, explorando pouco o forte drama existencial do protagonista – ainda que, mesmo assim, tudo resulte em um terceiro ato interessantíssimo), Fahrenheit 451 fica distante de ser o melhor trabalho da carreira de Truffaut – posto que, atualmente, cedo a A Noite Americana, poética e maravilhosa homenagem do diretor ao cinema. Ainda assim, não deixa de ser um ótimo trabalho: uma verdadeira ode à liberdade social e humana. Uma declaração de amor ao desfrute intelectual, que vale, principalmente, pela incrível atemporalidade temática.

Comentários (1)

Mateus da Silva Frota | sábado, 24 de Janeiro de 2015 - 16:42

Apesar de achar a adaptação de Truffaut bastante desorganizada, essa é uma das melhores críticas que já li por aqui.

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