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Críticas

Cineplayers

Tudo é sonho e verdade.

10,0

“Devemos viver nesse pequeno mundo. Nós nos contentaremos e cultivaremos isso, e faremos o melhor. De repente a morte chega, de repente o abismo se abre, de repente a tempestade se abate e o desastre cai sobre nós. É tudo o que sabemos (...) Devemos ser capazes de compreender o mundo e a realidade. Então poderemos reclamar de sua monotonia com a consciência limpa.”

Discurso de Gustav Ekdahl (Jarl Kulle)

Pode ser a saga de uma família opulenta. Pode ser a história de duas crianças que enfrentam pela primeira vez uma grande reviravolta na vida. Pode ser sobre muitos, sobre o indivíduo, sobre a infância, sobre a vida adulta, sobre a velhice ou simplesmente sobre a existência. Pode ser um drama, um épico, uma fantasia, um terror, uma comédia, uma aventura, um suspense ou mesmo um romance. Talvez seja autobiográfico e nostálgico, talvez seja apenas pessoal demais. Pode ser sobre os mistérios insolucionáveis da vida, as perguntas que nunca ganham respostas, ou pode ser sobre as respostas que já foram encontradas, porém jamais ditas. Pode ser realista tanto quanto pode ser surrealista, mágico e fantástico. Pode ser uma celebração à vida, ou uma constatação mórbida da proximidade da morte. Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1982) pode ser apenas mais um filme de Ingmar Bergman, assim como pode ser todos os seus filmes em um. E dentre tantas incertezas, a única afirmação que podemos fazer é que se trata do testamento de um dos maiores gênios do cinema.

Tudo em Fanny e Alexander pode ser considerado superlativo. Foi o maior sucesso comercial de Ingmar Bergman, e também seu filme mais pessoal, considerado por muitos como o autorretrato do cineasta, além de uma síntese de todos os temas tipicamente bergmanianos. Sua execução foi tão grandiosa e dispendiosa para os padrões dos estúdios suecos, que só a pré-produção durou cerca de um ano. Foram necessários centenas de figurantes, fora o gigantesco elenco central, uma busca incessante por locações específicas (como o deserto do sonho de Alexander, sequencia que pode ser assistida somente na versão estendida para a televisão), figurinos ostensivos, cenografia opulenta, e recriação de época fiel. E por mais que haja todo o apuro visual (com direito à fotografia do grande Sven Nykvist) e a longa duração, é um filme de aura misteriosa e enigmática, desses que quanto mais você procura desvendar, maior e mais indecifrável ele se transforma.

Foi a primeira e única vez que Bergman trabalhou com crianças assumindo os papéis principais, em especial Alexander (Bertil Guve), e isso lhe permitiu filtrar seus temas recorrentes através de uma visão mais pura, límpida e suave. A história pode ser dividida em dois grandes momentos antagônicos, começando com uma visão de felicidade terna e alegre na vida dos irmãos-título, comemorando o natal na casa de sua avó, e participando de brincadeiras, danças, músicas e celebrações. É um momento muito forte no cinema de Bergman, principalmente a partir do ponto em que essa felicidade e ingenuidade são abruptamente corrompidas com a morte do pai de Fanny e Alexander. A partir daí, o filme ganha um contorno de horror, sofrimento e desencanto, quando os pequenos precisam pela primeira vez na vida encarar o mistério da morte e todas as dúvidas que ela acarreta consigo, para logo depois serem obrigados a ir viver com o novo padrasto, um bispo rigoroso e cruel.

Se no começo a grande aventura de Alexander é se entranhar pelos quartos e corredores da mansão de sua avó e lá desvendar os mistérios e fantasmas do passado da família, agora ele encara mistérios de força maior e sem a alegria e empolgação com que fazia antes. Junto com Fanny, ele enxerga o fantasma/alucinação de seu pai, enfrenta os castigos e punições irracionais do bispo, e por fim acaba conhecendo o sobrinho enigmático do amigo judeu da família, Ismael (Stina Ekbad), que consegue ler seus pensamentos, enxergar sua alma e desvendar seus desejos de vingança contra o padrasto.

Embora Alexander seja o ponto central da obra, Bergman permite por vezes abrir espaço para que outros personagem agreguem visões e conflitos diferentes que só fazem o filme alcançar maiores proporções. Helena (Gunn Wållgren), a avó, por exemplo, levanta discussões sobre o medo de envelhecer e deixar morrer não apenas o corpo, como também as centenárias tradições e histórias da família. Oscar (Allan Edwall), o pai, representa o núcleo de artistas da família, e toda sua preocupação em passar para as próximas gerações a consciência cultural de sua profissão. O bispo é a representação de Bergman de sua rígida educação religiosa, e quando aparece evoca a atmosfera e os temas que o diretor já havia discutido tantas vezes, sobre o silêncio de Deus em especial, principalmente em Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1963). O tio Gustav é o alívio cômico, o personagem mulherengo e divertido que realiza a certa altura do filme o discurso em parte supracitado, que repercutiu bastante na carreira de Bergman, por ser um dos seus momentos mais “otimistas” e edificantes.

Apesar da base realista, o filme ganha um contorno mágico não apenas por apresentar a visão por vezes sonhadora de Alexander, mas também quando se vê fora de seu alcance. A mágica da obra não cabe como uma fuga da realidade, mas como uma forma de confrontá-la e tentar talvez compreendê-la, pois para Bergman há mistérios muito maiores em nosso dia a dia do que no plano dos sonhos e das abstrações. Por isso há tantas figuras fantásticas transitando vez ou outra, como palhaços, dançarinos, estátuas vivas e fantasmas, mas é no plano real que tudo acontece de fato, como quando inexplicavelmente Isak Jacobi (Erland Josephson) faz com que a caixa que esconde Fanny e Alexander do padrasto simplesmente desapareça – um momento fabuloso em que a imaginação de um artista se sobrepõe à sua realidade, ou talvez se condense e forme uma coisa só.

Sintetizando todos os temas mais inerentes da carreira de Bergman, além de permitir ao cineasta homenagear abertamente seu grande ídolo, August Strindberg, Fanny e Alexander é sobre o ser humano que não desiste de sonhar mesmo quando em um território estéril para os sonhos, ou não desiste de continuar procurando uma razão de ser. Ao mesmo tempo em que é tão extenso e misterioso, tão capaz de se metamorfosear em mil filmes, ele permanece sendo um só, um apanhado geral de sua obra e uma visão terna sobre temas que tanto o corroeram durante sua trajetória como homem e cineasta. Foi anunciado como a obra derradeira do diretor para o cinema, embora ele tenha voltado com estilo mais de vinte anos depois com Saraband (idem, 2003), e continua hoje sendo analisado por inúmeros admiradores do cineasta, perdidos nos mistérios e simbologias. A única certeza que podemos ter está nas palavras que finalizam o filme, e que talvez resumam o que essa grande obra-prima queira passar: “Ilusão e realidade são uma coisa só. Tudo pode acontecer. Tudo é sonho e verdade.”

Comentários (7)

Nilmar Souza | segunda-feira, 19 de Maio de 2014 - 17:18

Concordo, e na minha opinião foram 6.

Darlan Pereira Gama | segunda-feira, 19 de Maio de 2014 - 20:36

Essa lindeza em forma de texto só poderia ser do Heitor mesmo Parabéns! Em relação ao filme, dos que vi só fica atrás de Morangos Silvestres.

Gustavo Hackaq | segunda-feira, 19 de Maio de 2014 - 21:30

Eu sei Fouá, mas para mim A Obra-Prima dele é Persona.

Caio Henrique | terça-feira, 20 de Maio de 2014 - 11:10

O único artista que se pode comparar ao nível de Bergman é o Tarkovsky. Ambos possuíam o talento de tornar em arte o seu cinema de forma tão própria e natural, com uma linguagem ao mesmo tempo identificadora, atemporal e bela.

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