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Críticas

Cineplayers

Provavelmente o melhor filme sobre alcoolismo de toda a história do cinema.

8,0

É incrivelmente notável a fluência que possuem os filmes de Billy Wilder. Independente de qual o caminho temático predefinido pelo roteirista e diretor austríaco, que possui em sua filmografia algumas das maiores obras dramáticas do cinema, bem como comédias inesquecíveis e extremamente irônicas, suas fitas são marcadas por um ritmo praticamente ininterrupto, movimentado por situações extremistas e de forte composição moral. Seus textos normalmente são sarcásticos, até mesmo extremamente mordazes (conseqüência talvez de sua amargura com o mundo), e tão ricos em detalhes quanto a realeza inglesa em ouro. 

Na verdade, esta nem é a característica mais marcante da filmografia de Wilder, embora o seja se analisarmos separadamente cada uma de suas obras-primas. O que realmente canaliza nossas atenções, quando analisamos de uma forma geral o legado imensurável deixado pelo mestre, é o gigantesco paradoxo existente em suas qualidades como realizador. Explico: ao mesmo tempo em que Wilder, no melhor de sua forma, consegue transformar seus dramas em verdadeiros contos de horror, devido, principalmente, à grandiosa carga dramática empregada por ele às situações-chave do filme e à extrema habilidade com que compõe visualmente essas cenas, também apresenta uma capacidade extraordinária de dirigir fitas cômicas insuperáveis - pelas quais possui fama até os dias de hoje.    

Farrapo Humano, filme que rendera os primeiros Oscars a filmes do diretor (ganhou melhor filme, diretor, roteiro e ator), se encaixa perfeitamente (e exclusivamente) na primeira opção. Ao narrar as complicações sofridas por um escritor alcoólatra em busca de bebida, ao longo de um fim-de-semana marcado por sua degradação física e moral perante à sociedade e sua própria saúde, Wilder permite que sintamos sensações poucas vezes associadas aos dramas da clássica Hollywood: medo, pavor, angústia e, principalmente, dor e sofrimento. Esse, ao menos, fora o estado em que me encontrei após o término de minha “sessão de cinema” pessoal com a obra, e que, mesmo que possa ter sido uma reação exclusiva de minha pessoa, demonstra um pouco da carga dramática fortíssima empregada pelo diretor ao longo dos 101 minutos de sua duração.

Detalhes como estes revelam a grande ousadia que fora a produção desta fita, justamente em uma época onde o cinema procurava, junto com a política, reanimar e reconstruir a sociedade após a terrível crise do capitalismo, estourada em 1929 (a qual adquirira contextos ainda mais dramáticos com o estopim da Segunda Grande Guerra, que, por ventura, ainda estava em andamento, angariando inestimáveis e drásticas conseqüências). A crueza com que Wilder expõe a dura realidade sobrevivêncial de um indivíduo viciado em bebida alcoólica é algo estonteantemente impressionante mesmo sem levar em conta o ano de produção da obra, algo que estimula nossa imaginação a respeito de qual teria sido a reação do público em sua primeira experiência com a obra.

No filme, o maravilhoso Ray Milland, em atuação que lhe rendera, merecidamente, o Oscar de melhor ator do ano, é Don, um desconhecido escritor que, com o acompanhamento do irmão, realizará uma pequena viagem de férias durante um fim-de-semana. Porém, dominado pela incontrolável necessidade de ingerir alguma dose de álcool, adia o horário da viagem e parte para o início de uma odisséia trágica e inesquecível em sua vida: deixado na cidade pelo irmão, após se atrasar para o embarque, sem dinheiro nem qualquer motivação para escrever, Don acaba rebaixando-se aos mais vergonhosos níveis de aceitação social, tudo para conquistar a tão sonhada garrafa de bebida.

O roteiro de Farrapo Humano, construído quase que inteiramente acerca da personagem de Milland, é incrivelmente cheio de detalhes, como um bom produto de Wilder sempre o é. Assim como em seus melhores trabalhos, leia-se Crepúsculo dos Deuses e A Montanha dos Sete Abutres na parte dramática, e Quanto Mais Quente Melhor na parte cômica (ao menos dentro daquilo que já tive o prazer de assistir na extensa filmografia do diretor), Wilder desenvolve sua história de maneira inteligente, composta de diálogos cínicos e cheios de geniais sutilezas, que vão dando forma às características das personagens e das situações com o passar do tempo. 

A demonstração de maestria de Wilder inicia já na primeira seqüência da obra. Após o rolar dos créditos iniciais, uma grandiosa panorâmica vai mostrando as formas e contrastes da cidade, enquanto a câmera movimenta-se horizontalmente, indo de encontro a um edifício. A câmera começa a se aproximar de uma janela, e podemos notar que existe uma garrafa presa através de uma corda em seu parapeito, antes de ela adentrar as dependências de um cômodo. Uma conversa entre dois homens começa a se desenrolar e, a partir de um comentário de um dos indivíduos, já podemos captar toda a situação: o outro é alcoólatra, e a garrafa presa no parapeito é a arma do crime. A apresentação da cena é fria como o gelo, mas sua clareza é tão grande ou até maior do que a de um lago de água pura e cristalina.

Porém, existem outros grandes momentos dentro do desenvolvimento estético de Farrapo Humano. Billy Wilder, em sua essência, sempre fora um diretor que dera atenção extremamente especial para seus roteiros, praticamente se abstendo de qualquer composição visual ousada ou movimento de câmera que quebrasse a invisibilidade do trabalho do diretor. Mesmo assim, constrói grandes momentos de apelo exclusivamente visual, como durante o primeiro flashback, na cena da “dança dos casacos”, onde Don visualiza apenas os sobretudos das personagens de uma peça de teatro dançando sozinhos, com uma garrafa de bebida no bolso - situação em que se encontrava seu próprio casaco, na recepção das dependências do teatro (porém, estava estático, é claro).

Falando em Don, é impossível redigir um texto sobre este filme sem comentar a exorbitante interpretação de Ray Milland. O ator encarna com perfeição absurda a situação dramática da personagem, vivendo com intensidade e extrema qualidade um papel de difícil interpretação. Enquanto Don procura desesperadamente por bebida, com seu olhar arregalado, mãos trêmulas e cabelos despenteados, sentimos na pele uma claustrofóbica sensação de estarmos presos em meio à angústia do protagonista, algo admirável, mesmo sendo tão desesperador. Com essa interpretação, Milland viria a ser premiado com o Oscar, realmente uma grande justiça a um trabalho de composição meticuloso e bastante dificultado pela ousadia da produção. 

Um bom exemplo disso, entre vários que poderiam ser citados, é a cena em que Don está sofrendo de Dellirium Tremens, alucinação provocada pela abstinência de álcool no corpo de um viciado. A cena se passa logo após Don ter fugido da ala de alcoólicos de um hospital, enquanto está sentado em uma poltrona de sua casa, à noite. Além de extremamente assustadora (a seqüência inclui um morcego mastigando um rato que adentrava a sala através de um buraco cavado no alto de uma parede), as expressões faciais do ator, no auge de seu desespero, são impressionantemente avassaladoras. Esta, inclusive, talvez seja a cena mais impactante da obra, devido à junção deste com diversos outros elementos.

Um deles, que merece destaque não apenas por sua presença nessa seqüência-chave, mas sim por toda a sua influência na composição da dramaticidade do filme, é a trilha-sonora, desta feita por Miklos Rozsa. Acentuando os detalhes macabros da obra (que, em minha visão, não são poucos), a trilha sonora poderia se encaixar perfeitamente em qualquer produção de terror psicológico que se faça até os dias de hoje. Seus acordes graves e impactantes são pesados e permitem a construção de uma tensão imensa, acentuando ainda mais a sensação desconfortável (vale esclarecer, positivamente desconfortável, já que isso é um elogio levando-se em conta o filme em questão) promovida pelo filme. 

Talvez este seja o trabalho mais completo sobre alcoolismo no cinema. Não me recordo, no momento, de uma abordagem mais interessante e até mesmo complexa do que esta feita por Billy Wilder em 1945. É um filme que consegue, de forma sutil e bastante realista, englobar todas as questões que envolvem o vício, incluindo causas e também conseqüências sofridas por quem adquire essa “doença”. Embora contenha um final feliz (ou melhor, feliz se levarmos em conta o que poderia ter acontecido, já que as últimas linhas do texto não são nem um pouco agradáveis), é uma fita séria, por vezes deprimente, e pouco recomendada àqueles que procuram no cinema apenas diversão e escapismo. Apesar disso, é um filme brilhante, essencial aos verdadeiros apreciadores da arte. Mais uma obra-prima de um dos maiores diretores e roteiristas da história do cinema.

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