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Críticas

Cineplayers

Meu filme preferido de Hitchcock é um suspense magistral, tecnicamente e psicologicamente.

10,0

Vou começar pelo óbvio: esse filme é genial! Mesmo com Psicose, Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Intriga Internacional, e muitas outras obras-primas, Festim Diabólico é meu filme favorito do imortal diretor Alfred Hitchcock. É também um dos melhores suspenses de todos os tempos: assistir o filme pela primeira vez é enfrentar uma tensão crescente que poucos diretores já conseguiram passar para as telas. Nada de fantasmas ou aparições, Festim Diabólico trata do real, apresentando os maiores defeitos e qualidades das emoções humanas, funcionando tanto como um simples entretenimento quanto um estudo aprofundado de personagens.

Gravado totalmente em estúdio, este é talvez o filme mais experimental do diretor e, portanto, o mais ousado. É seu primeiro filme colorido, mas não é experimental por causa disso: ele foi filmado em apenas 10 tomadas de oito minutos cada uma. Oito minutos de filme, para a época, era o máximo que um rolo de filme podia suportar. Mas boa parte dos cortes presentes entre essas tomadas são imperceptíveis (o que torna a técnica do filme ainda mais genial): Hitchcock utilizou truques de edição para tentar disfarçar o máximo possível a passagem entre os poucos rolos de filme utilizados. Por exemplo, aproximando o foco de um local escuro para, no próximo rolo, filmar em zoom out a partir daquele local. Pronto! Temos um corte que poucos notariam.

Para os atores o uso de tal técnica também foi complicado. Se hoje em dia o cinema é marcado por tomadas rápidas, que permitem ao diretor refilmá-las sem muita perda de tempo caso ocorra algum problema, imagine o trabalho de filmar uma cena de oito minutos. O estilo teatral do filme, portanto, é bem evidente: tudo bem coreografado, através da repetição, até que a cena saísse perfeita (e sendo Hitchcock um diretor altamente perfeccionista, a dificuldade e pressão para cima dos atores foi ainda maior). Para se ter uma idéia, durante as filmagens, apenas um segmento por dia era finalizado. E demonstrando seu perfeccionismo, o diretor chegou a refilmar cinco ou seis segmentos por causa que ele não estava completamente contente com a cor da luz do sol nessas tomadas. Obviamente, genialidade requer trabalho extra e muita paciência.

A história de Festim Diabólico é simples, mas repleta de personagens que tornam o filme complexo e dinâmico, no sentido de imprevisível. É levemente baseada em um caso real: em 1924 os jovens Leopold e Loeb (19 e 18 anos, respectivamente), raptaram e mataram um garoto de 14 anos chamado Bobby, na cidade de Chicago. O caso teve grande repercussão em jornais da época. Ambos foram julgados, mas conseguiram escapar da pena de morte, sendo apenas aprisionados. Loeb morreu na prisão, e Leopold saiu dela após 45 anos, morrendo no início dos anos 70. Era quase evidente que ambos eram homossexuais (isso nunca foi tido como certo). Em Festim Diabólico, Hitchcock pega apenas a premissa geral para criar o roteiro (e mantém a suspeita de homossexualismo, da forma mais sutil possível, tanto que muitas pessoas nem desconfiam quando assistem ao filme – lembre-se, o ano de lançamento foi 1948, e tal assunto não era discutido muito abertamente).

No filme, o crime tem motivo intelectual: na cidade de Nova York, Brandon (John Dall, que não fez muitos filmes, mas participou de Spartacus, de Kubrick) e Phillip (Farley Granger, que tem uma enorme filmografia, entre ela Pacto Sinistro, outro clássico de Hitchcock) assassinam seu amigo David, por considerarem-se superiormente intelectuais em relação a ele. O assassinato, com uma corda (Rope, o título do filme) é a primeira cena. Com toda a frieza e arrogância do mundo, eles resolvem provar para eles mesmos sua habilidade e esperteza: esconderão o cadáver em um grande baú, que servirá como mesa e estará exposto no meio da sala de estar do apartamento deles, durante uma festa que realizarão logo em seguida.

Tudo torna-se ainda mais interessante ao descobrirmos que entre os convidados estarão o pai, a noiva e a tia da vítima, além do outro pretendente de sua noiva, Kenneth. Completando a lista de pessoas presentes na festa, está a senhora Wilson (a empregada) e principalmente Rupert Cadell (o também imortal James Stewart, um dos meus atores favoritos de todos os tempos e que trabalhou muito com o diretor, como em Janela Indiscreta, por exemplo). Rupert é o professor da dupla de assassinos, cujas opiniões em classe, aceitas de forma errônea por eles, acabaram motivando-lhes a cometerem o crime.

Enfim, temos a velha história (mas geralmente interessante) da tentativa de se criar o assassinato perfeito (Pacto de Sangue é outro filme maravilhoso que me vem à cabeça sobre o mesmo tema). Mas isso seria uma explicação muito simples sobre o tema de Festim Diabólico. Hitchcock nos proporciona uma obra que vai crescendo em tensão e complexidade a cada nova tomada sem cortes (é o filme onde ambos – técnica e conteúdo – são magistrais). Tudo começa a ficar ainda melhor quando Brandon, em sua arrogância cega, começa a jogar pistas, sutilmente, sobre o crime que acabara de cometer e, à medida que o professor Rupert vai começando a desconfiar dessas pistas, Phillip, nessa altura já mentalmente desgastado, começa a sucumbir ao medo de ser descoberto.

Não vou falar mais porque perderia a graça, mas posso garantir (e repetir o que já falei antes) que este é um dos filmes mais tensos que já assisti na vida, provando que uma obra não precisa de elementos espetaculares para ser boa. Todo o tempo o diretor permanece dentro do apartamento, e apenas seus personagens são suficientes para segurar a atenção do espectador (obviamente, há uma parte do público que acha tudo isso uma chatice, afinal não é regra universal ter que gostar de Hitchcock e seu talento inegável). Interessante é o fato (e talvez ele ajude na minha opinião de ser meu filme favorito do diretor) de que aqui não há o velho clichê Hitchcockiano da loira sensual (pense em Intriga Internacional, Psicose e Janela Indiscreta, só para citar alguns exemplos): embora a noiva de David, Janet (Joan Chandler) seja muito bonita, ela não é personagem de destaque do filme em momento algum (e também não é loira, de qualquer forma).

É interessante destacar que para muitos críticos este não é um filme tão respeitável do diretor quanto Psicose ou Janela Indiscreta, por exemplo. Na época de seu lançamento, fracassou crítica e comercialmente. Mas, em minha opinião, Festim Diabólico é tão perfeito quanto um filme do gênero suspense pode ser. Hoje em dia, esse gênero está lotado de filmes que realmente não provocam no espectador nenhuma sensação de tensão, temor ou dúvida pelo que vai acontecer em seguida, características comuns desta obra. Este também é um filme que demonstra o porquê do diretor ser mundialmente conhecido como o “mestre do suspense”. Roteiro magnífico, atores em interpretações impecáveis (James Stewart fascinante como sempre, mesmo que seu personagem não seja o protagonista), técnica original (mesmo para os dias atuais, onde poucos se aventuram a fazer esse tipo de coisa) culminam em uma obra-prima – mais uma – de um dos melhores diretores de todos os tempos. Filme obrigatório para qualquer um que se ache um pouco entendido de cinema.

Curiosidades gerais sobre Festim Diabólico

- O professor Rupert seria interpretado, inicialmente, pelo ator Cary Grant, que trabalhou com o diretor em Intriga Internacional, entre outros filmes.

- O filme possuiria uma cena externa, que foi utilizada para promovê-lo antes de seu lançamento, no trailer. A cena passava-se no Central Park, mostrando os personagens de David e Joan em um momento romântico, enquanto uma narração de fundo falava que o casal nunca mais iria se rever. O trailer pode ser encontrado no DVD do filme.

- Como de costume, Hitchcock também faz sua aparição aqui: logo no início do filme, na rua. Mais tarde, seu perfil pode ser encontrado em uma placa de néon, um tanto desfocada, ao fundo da cena, na cidade.

- Como o filme foi filmado inteiramente em estúdio (exceto a cena inicial da rua, onde os créditos iniciais são exibidos), as nuvens visíveis do lado de fora do apartamento não são naturais, e sim feitas de fibra de vidro. Para capturar o som do carro de polícia, um microfone foi colocado do lado de fora do estúdio da Warner, em cima do portão de entrada, com uma ambulância se aproximando em velocidade máxima.

- Em 2002 foi lançado Cálculo Mortal, um filme baseado no mesmo caso de assassinato, onde Sandra Bullock é a protagonista. É um bom filme, embora bem diferente de Festim Diabólico, exceto pelo tema.

Comentários (8)

Luiz F. Vila Nova | quinta-feira, 14 de Agosto de 2014 - 10:59

Um dos melhores do mestre, ao lado de Psicose, Um Corpo que Cai e Janela Indiscreta. E a insinuação homossexual na trama de Festim é bastante perceptível. Ótima crítica, Koball.

Paulo Rosa | sexta-feira, 26 de Junho de 2015 - 20:26

A metáfora é brilhante.

Daniel Cunha Moüta-Vieira | domingo, 17 de Maio de 2020 - 01:45

A insinuação homossexual em NADA altera o enredo do filme. Que diferença faz a opção sexual dos assassinos ?! E que importância isso tem pro desenrolar do filme ? NENHUMA, Fora isso um excelente filme que nos leva a olhar pra dentro de nós mesmos e fazermos uma auto-análise de até que ponto essa teoria de "superior/inferior seja pretexto para que alguém seja assassinado. E termino reiterando que a opção sexual dos assassinos em NADA tem a ver com a trama do filme. A opção sexual de cada um é problema de cada um e isso não muda em NADA no filme !

Walter Prado | domingo, 17 de Maio de 2020 - 18:06

Eu gosto muito de Festim Diabólico, mas este tem em sua fraqueza a mesma de Pacto Sinistro, Farley Granger era muito fraquinho.

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