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Críticas

Cineplayers

O bom contador de histórias.

8,5
O cinema de M. Night Shyamalan foi há muito tempo estereotipado pela crítica. E não me refiro ao momento em que o seu trabalho começou a desagradar mais do que agradar. O estereótipo do que seria esperado de Shyamalan é anterior a isso. Ele foi se estabelecendo já desde a recepção de seu segundo thriller, Corpo Fechado, e fortemente reafirmado depois de Sinais e A Vila.

Não é difícil perceber o que passou a ser esperado dele. Shyamalan causou uma forte impressão por ser extremamente habilidoso com o modo como contava suas histórias. Criando, a cada filme, um universo narrativo que tinha como princípio o mistério, e, como clímax, a surpresa da solução desse mistério. Acredito que o próprio diretor caiu um pouco vítima dessa expectativa, como me parece bem evidente em Fim dos Tempos, um filme fragilizado pelo artifício do mistério pelo mistério.

Fragmentado surpeendeu-me, justamente, por abrir mão dessa sedução cativante do mistério; por, aparentemente, expor com rapidez as diretrizes que regem aquele universo e os personagens que o habitam. Ele estabelece quase imediatamente a base para que se possa entender o está em cena, tirando as dúvidas do caminho, e vai, depois, aos poucos acrescentando novos detalhes, informações mais circunstanciais sobre os personagens. Ele cria, assim, uma estrutura tão forte para aquele universo que é possível antecipar acontecimentos futuros da trama, porque os personagens e o universo estão claros e são coerentes.

Então o filme pode ser tido como “expositivo” ou “previsível” (e de fato é essas duas coisas), mas apenas porque Shyamalan não abre mão de nos colocar ao lado dos personagens, de nos dar conhecimento de tudo que eles também têm conhecimento. E o texto do filme é muito habilmente montado a partir disso. Ele não está preocupado em manter informações escondidas do público ou dos personagens. Está tudo desde o início muito evidente: três garotas são sequestradas por um homem com múltiplas personalidades que as prepara para um tipo de sacrifício. O filme não se apoia em segredos e viradas da trama, mas na trama em si, na circunstância específica do sequestro e da situação do protagonista (James McAvoy).

Ao abrir mão desse tipo de artifício, Fragmentado se permite se aprofundar melhor nos personagens até encontrar na psicologia deles caminhos para resolver a trama. Colocar os personagens no divã é uma escolha eventual do cinema de suspense que é mais frequentemente problemática do que funciona. Este filme, no entanto, é um dos casos em que funciona, porque Shyamalan não usa da situação psicológica dos personagens para manipulá-los a agir segundo os interesses da trama. Pelo contrário, os seus traumas estão na base da sua construção, mesmo que só tomemos conhecimento deles mais adiante.

A antagonista das personagens múltiplas de McAvoy, uma das garotas sequestradas (Anya Taylor-Joy, mais uma vez subvertendo o lugar da scream queen) é um ótimo exemplo de como o filme opera esse divã. A personagem está desde o primeiro momento agindo a partir de determinadas respostas psicológicas. Mas essas ações são tão banais e sutis que podem passar despercebidas como resultado de um processo psicológico.

Então, ao mesmo tempo em que os vários McAvoy estão evidentemente agindo a partir de um lugar psicopatológico muito específico, a sua antagonista também está, embora o filme nos faça mais alheios das circunstâncias dela. O embate se torna assim muito interessante porque, ao mesmo tempo em que o filme é bastante expositivo com a trama, ele não o é com os personagens. E Taylor-Joy faz um trabalho fantástico de mostrar o resultado (nos gestos, no corpo) de tudo pelo que a personagem passou sem, em nenhum momento, expor o que foi que aconteceu com ela. Isso é uma tarefa que Shyamalan inteligentemente assume para ele, tirando das mãos da atriz.

Fragmentado, como o bom cinema de gênero, não traz as questões do gênero a partir de alguns estereótipos narrativos e fetiches estéticos, mas de como os personagens experimentam o que acontece com eles. A experiência do suspense e, eventualmente, do horror surgem na centralidade dos personagens para o filme e se sustentam na mesma medida em que os personagens e o universo seguem coerentes. Fragmentado é um bom filme de Shyamalan, mas é principalmente uma boa história. E é na sua habilidade meticulosa de contar bem boas histórias que está a riqueza do bom cinema de Shyamalan. Este filme fica entre os melhores.

Comentários (11)

Guilherme Rodrigues | quarta-feira, 19 de Abril de 2017 - 21:05

Fiquei me perguntando se o desfecho é uma porta aberta para uma possível continuação onde McAvoy e Willis se encontrariam

Augusto Barbosa | quinta-feira, 20 de Abril de 2017 - 14:02

Retorno definitivo pra onde? Ele nunca deixou de ser grande. Rs

Felipe Lima | quinta-feira, 20 de Abril de 2017 - 17:28

"Fiquei me perguntando se o desfecho é uma porta aberta para uma possível continuação onde McAvoy e Willis se encontrariam".

É sim. O roteiro tá sendo finalizado, segundo o próprio Shya. Deve ser o próximo filme dele.

Guilherme Rodrigues | sexta-feira, 21 de Abril de 2017 - 03:09

Embora eu fique empolgado também tenho um certo receio pra que caminho vai tomar essa "trilogia"... espero que mantenha o nível lá em cima

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