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Críticas

Cineplayers

A vida imaginária de Serge Gainsbourg.

6,0

Parece haver uma espécie de acordo entre grande parte das cinebiografias musicais, onde os protagonistas alcançam o sabor da glória para logo mais serem consumidos pela gradual autodestruição. Provavelmente isso funcione para legitimar a importância (e a necessidade de se contar a trajetória) da figura que, durante sua vida, mergulhou nas mais diversas experiências, e viveu intensamente tanto seu apogeu quanto seu fracasso – seja esse pessoal ou profissional (ou as duas coisas). Essa característica em particular é um dos poucos pontos que Gainsbourg - O Homem que Amava as Mulheres (Gainsbourg (Vié heroïque), 2010) tem em comum com outros tantos filmes do gênero, visto que não é de interesse de seu diretor desenvolver a trajetória do famigerado compositor francês como um epitáfio – sua homenagem segue caminhos bem diferentes.

Por parte de Joann Sfar, há uma sinceridade latente em seu filme, um olhar apaixonado de fã sobre a vida e obra de seu ídolo. Essa é a razão pela qual o estreante diretor estabeleceu opções narrativas destoantes das cinebiografias mais convencionais. Os amores e as conquistas de Serge Gainsbourg são mergulhados num universo fantasioso, em suas esporádicas fugas da realidade e, mais adentro, de boa parte dos paradigmas pregados pelo próprio gênero. O cineasta brinca com a linguagem, constrói uma atmosfera quase onírica, mistura personagens reais com criações imaginárias (o alter-ego do músico, que surge numa deturpação exagerada de seus traços físicos) e faz com que a história aconteça numa estranha mescla entre verdades e mentiras – o que vem a promover tanto a criatividade quanto a bagunça narrativa em dados momentos.

O fato é que a condição de desenhista de histórias em quadrinho influenciou bastante Joann Sfar no trajeto de construção dessa cinebio, não apenas no aspecto textual, mas especialmente em sua concepção artística, no que tange os delírios visuais da obra (derivados especialmente da mente inventiva que o diretor modela em seu protagonista) até seu próprio apuro plástico. Nesse ângulo, portanto, cabe ao cineasta o mérito de adotar uma elegância estética favorável ao diferencial criativo que propõe em sua trama. Contudo, se por um lado, Gainsbourg afirma o talento artístico de seu diretor, por outro, indica um problema deste em contar suas histórias no cinema – seja por causa do deslumbramento que o aparato técnico lhe causou ou mesmo em razão do fascínio pelo material que tinha em mãos, que o impediu de ver quando sua obra começa a fraquejar.

Gainsbourg é, entre outras coisas, um filme bem menos interessante do que deveria ser – ou melhor, do que sua proposta inicial nos permitiria concluir. Em um momento, quando a criatividade que se fazia eficaz para sustentar a projeção passa a esvaziar (especificamente, na fase infantil do protagonista), a história começa a andar com as pernas de Eric Elmosnino, que encarna admiravelmente o personagem-título e consegue desviar nossa atenção para sua performance até mesmo quando a trama está perdendo o fôlego. Tamanha é a vontade de Sfar em construir um filme diferente dos demais, onde se siga uma linha tão sinuosa quanto a própria vida desmedida do compositor, que o diretor acaba falhando no tratamento de personagens (os pais do músico), de eixos dramáticos (o relacionamento do músico com Jane Birkin) e da própria trama em si.

Embora sejam sinceras as ambições de Joann Sfar, tratando-se da biografia do compositor de Je t’Aime, Moi non Plus (uma das canções eróticas mais escandalosas de sua época), falta em Gainsbourg uma ousadia à altura de seu personagem central. Por mais que seja interessante ver sua vida narrada através de meios pouco habituais, deixa a desejar na veracidade dos sentimentos que transpõe para a tela, onde poucas são as mulheres que passam pela trama e deixam alguma marca – quando não congestionam a trama, algumas funcionam como mero registro amoroso do biografado, sem qualquer paixão ou personalidade. O ponto alto da história fica por conta da presença limitada, mas memorável da atriz Laetitia Casta que interpreta o símbolo sexual Brigitte Bardot, no período em que esta teve um affair com o cantor. Nesses momentos, em que ela se faz presente em cena junto de Eric Elmosnino, sentimos enfim a vivacidade do filme, o charme e a força da história que está sendo contada – ainda que isso ocorra não em razão das pretensões narrativas de seu diretor, mas justamente apesar delas.

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