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Críticas

Cineplayers

Garota sem interrupção.

9,0
Com a estrutura a emular um olhar documental dentro da ficção, o estreante Lukas Dhont não tem medo de desafio e procura construir um equilíbrio delicado entre as duas linguagens. Com um tema pertinente como o da transexualidade, o belga recheia sua moldura ambiciosa com a história de Lara, que é descoberta pelo longa em processo já avançado de compreensão pessoal. O universo que a rodeia é de aceitação no geral, o que gera uma sensação de falso conforto para a protagonista, que está na fase final do acompanhamento para a operação de redesignação sexual. Seu dia a dia é rico em elementos: ela estuda, ajuda o pai a cuidar do irmão pequeno, pratica balé, ao mesmo tempo em que atravessa a adolescência inibindo sua puberdade por conta do surgimento dos hormônios masculinos. Isso ironicamente, ao mesmo tempo que a exclui de sua iniciação sexual, garante a ela sua autonomia na figura feminina que a permitirá justamente liberdade de gênero.

As opções estéticas de origens documentais dão um teor íntimo a mais ao projeto, como se estivéssemos a todo momento presenciando momentos de resguardo da personagem e de quem a circula, uma escolha que ultrapassa o conceito de beleza artística e enche de inteligência o projeto. Vemos Lara como testemunhas oculares de suas dores físicas e emocionais, invadindo cada fresta para destacar suas reações silenciosas ao vilipendio gerado pela estranheza que, mesmo aceita, ainda incomoda. Dhont transforma o olhar privilegiado do espectador em mais uma forma de violência cometida contra ela e que começa mesmo no acolhimento da casa. Por isso, essas decisões vão credibilizando o filme como um tratado sem maniqueísmo e/ou paternalismo sobre as novas configurações de liberdade pessoal, ao mesmo tempo em que expõe ao público os dilemas internos de Lara, também aciona reflexões pessoais acerca de individualidades.

Dhont se infiltra naquela história de ficção concebida por ele mesmo como um invasor, roubando a intimidade de sua personagem para um bem maior: expor o humano por trás do que se imagina mecânico. Lara é uma menina como outra qualquer, que sofre de dor nos pés por conta da sapatilha, que está às voltas com o primeiro amor, que descobre insuspeitos dotes culinários, que age como a mãe que não teve para o irmão caçula. Esses instantâneos são captados pelo filme, que ainda se desdobra do que a transforma em indivíduo - além disso tudo, Lara enfrenta um desgastante processo de afirmação médica da sua sexualidade, confronta o bullying velado em grupos de amigas, precisa lidar com um pai amoroso que a apoia, mas que sutilmente ainda a posiciona como menino; todas as sutilezas que unem pai e filha são os momentos mais bonitos de um longa que transborda dessa delicadeza em seu DNA.

A textura que positivamente confunde 'Girl' e o coloca num patamar híbrido de gêneros (e como é uma metáfora interessante um filme com essa narrativa borrar os limites entre ficção e realidade), nos arrasta pelas aulas de balé de sua protagonista, filmadas quase como instrumentos de tortura quase dopando a personagem, que se esforça ao máximo para ser perfeita em algo no qual ela não depende de ninguém além do seu próprio esforço. Como vive em compasso de espera pela própria identidade, Lara explora na dança algo que só ela pode elevar e dedicar. A câmera em determinada cena rodopia junto com ela incansavelmente pelo cenário repleto de outros bailarinos, onde seu esforço chega às raias da exaustão e gradativamente a leva a encruzilhada final, em atitudes que levarão a uma cena de profundo desespero físico e emocional.

A trajetória de Lara ainda conta com a impressionante naturalidade de Victor Polster, o ator que vive com extrema dubiedade essa personagem. Sua atuação ultrapassa o naturalismo padrão visto no cinema e enche a tela quase com uma não-atuação, um semblante que nunca está em ponto máximo de regozijo, sempre a espreita da próxima dor, mas como se fosse conformada com ela. Sua interação com Arieh Worthalter é igualmente merecedora de aplausos, outro ator igualmente em excelente composição, e os embates e carinhos entre pai e filha tem toda a credibilidade por conta de suas entregas, e pela qualidade dessa arrepiante estreia de Lukas Dhont, um filme que consegue conjugar diversas matizes aparentemente diferentes e criar com organicidade um trabalho de profunda beleza e apuro estético, a uma realidade ainda pouco aprofundada, aqui vista no limiar da veracidade.

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