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Críticas

Cineplayers

Um filme de palavras.

4,0

Quando a cineasta Tata Amaral apresentou Hoje (idem, 2011) em Tiradentes, já no fim do seu pronunciamento, disse se tratar de um “filme de silêncios”. A definição é curiosa, pois, se o filme existe, é porque dois dos seus únicos cinco personagens, envolvidos em um exaustivo diálogo, falam quase sem parar. As imagens de Hoje se resumem a filmar os corpos e, em certos momentos, projetar sobre eles e sobre as paredes do apartamento que ocupam algumas memórias do passado de ambos — que, seguindo a regra verborrágica do filme, surgem apenas através de palavras, com recortes de jornais e documentos. A definição de Tata, ao que se percebe por isso, é justamente o oposto do filme exibido na sessão. Não se trata de um “filme de silêncios”, mas de um “filme de palavras”. Um filme sem imagens.   

Hoje se desenvolve inteiramente em uma mesma tarde, num apartamento de São Paulo, para o qual Vera (Denise Fraga) está se mudando após comprá-lo com o dinheiro recebido da indenização de seu ex-marido, militante político uruguaio que desapareceu há 25 anos, durante o período da ditadura militar brasileira. A tragédia do passado propulsiona uma melhora financeira e consequentemente social para Vera, que também passa a ser reconhecida legitimamente pelo Estado como viúva. O dia que marca este momento de transição, porém, é interrompido pelo surgimento repentino do ex-marido desaparecido, cuja existência física a diretora coloca em dúvida através de um jogo de possibilidades entre o real e o imaginário de Vera, mas que, na fragilidade imagética do filme, não encontra a menor vitalidade para se sustentar.

Tata Amaral encena com certo rigor teatral, com uma sofisticação verbal que não soa como mais do que pedantismo. A sustentação exclusiva nos diálogos, embora seja solução para resolver um filme de pouca ação de cena (com exceção de Vera e do ex-marido, aparecem também apenas a síndica do prédio e dois carregadores que auxiliam na mudança), torna-se um recurso exaustivo, que não consegue transmitir a força que a história da mulher, marcada por chagas de um momento político conturbado do Brasil, poderia ter — especialmente por tratarem-se de reflexos de um período tão recente do país, cujas marcas estão presentes não apenas na memória coletiva e histórica, mas em pessoas ainda vivas, que guardam dele recordações intensas.

Apoiado em um tema contundente, porém utilizado de maneira oca, inconsistente, Hoje acaba soando mais como um filme sobre a conquista da casa própria do que sobre esta mulher e sua necessidade de superar os fantasmas do passado — um passado que, no filme, não é mais que uma muleta para legitimar a aquisição do apartamento em um bom edifício de São Paulo, de mostrar que este trajeto não foi fácil de ser percorrido. A sensação é reforçada quando o filme finalmente decide solucionar a existência física do ex-marido, depois de gastar todas as suas cartas tentando sustentar o frágil suspense que dela emana. As feridas, aparentemente tão expostas, tão abertas, logo se cicatrizam, restando apenas sorrisos, o sol batendo na janela e uma sensação de bem-estar adquirida com alguns maços de dinheiro.

Visto na 15a Mostra de Cinema de Tiradentes.

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