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Críticas

Cineplayers

A obra-prima de Joseph Lewis é o menos romântico dos noirs da velha Hollywood.

9,0

Império do Crime pode ser encaixado sem maiores dificuldades na interminável lista de obras-primas deste espetacular gênero cinematográfico, porém talvez seja o filme que mais divirja do classicismo típico do submundo de corrupção moral que substancia o universo do filme de crime norte-americano. Ritmo lento, direção carregadíssima, narrativa cíclica e sem quaisquer momentos de clímax – com exceção do final, ainda que nem mesmo este se esforçe pra ganhar notoriedade em meio ao conjunto de ações que estruturam a trama. Todos elementos desprezados pela cartilha de características básicas do noir e que juntos dão o atípico e instigante tom deste filme de Joseph H. Lewis.

Pode-se teoricamente considerar The Big Combo uma espécie de anti-noir, mas na prática esta obra-prima de Lewis (diretor de outros extraordinários filmes esquecidos como Reinado do Terror e Mortalmente Perigosa) revela-se um dos momentos mais brilhantes do movimento. É um filme genial. Intrincado, sem qualquer esforço de fluidez entre as sequências, recheado de personagens fechados em seus próprios interesses e estruturado sobre uma subversiva e inteligentíssima troca de identidades: se o protagonista, a principio, é o policial obcecado por desmascarar o atual homem mais poderoso do império criminoso de uma metrópole, no fim o verdadeiro cerne de toda a estória acaba transportado justamente para o vilão, interpretado com uma frieza impressionante por Richard Conte.

O filme pode ter sua temática rasgada em duas metades: é um grande estudo sobre o poder, personificado no personagem de Conte [‘first is first, second is nobody’, é o seu bordão], mas também uma intersecção entre a inveja e o amor como formas de justificar a dedicação obsessiva do policial ao seu trabalho – num caso que custou à corporação mais de 18 mil dólares e não trouxe sequer um indício de possíveis resultados, somente a aproximação dele de seu objeto de desejo. E é no balanço entre as duas faces da moeda que gira todo o universo de The Big Combo. Uma disputa de personalidades conduzida com frieza e distanciamento, o que gera um conflito radical e inesquecível dentro daquela habitual máxima do noir.

É impressionante como o filme consegue se manter na defensiva durante o tempo todo e mesmo assim ser palco de pelo menos umas dez sequências marcantes, daquelas para serem lembradas sempre, ou enquanto o Cinema ainda existir ou ter a capacidade de recordar seus grandes feitos. Desde a tortura aplicada pelo big boss ao policial, uma das primeiras seqüências de confronto físico entre ambos, até o momento em que o canalha apronta-se para assassinar seu ex-colega – e atual algoz – e decide dar a ele a chance de “não ouvir os disparos”, Império do Crime é arquitetado com uma impressionante sensibilidade plano sobre plano - mesmo que Lewis continue mantendo a unidade impecável que o transforma em um dos grandes exemplos acadêmicos de cadência rítmica.

É interessante observar como a audácia de Lewis permite ao diretor transformar seu filme em um produto de anti-diversão, bem diferente de praticamente todos os noir do mesmo período, que normalmente apresentavam tramas policiais milimetricamente arquitetadas com o único propósito de mexer com as emoções – e os nervos – de quem tanto curtia o gênero. É um trabalho aparentemente mal resolvido, sem grandes surpresas de trama, lento, exaustivo, pesado e tão obscuro quanto os cenários embebidos por uma indescritível negritude pelos quais passeiam os personagens, mas que ainda assim – ou justamente por isso – exibe uma força impressionante, com um impacto extraordinário extraído da secura da mise-en-scène e da negação à manipulação de superfície.

Para tanto, Lewis tem a seu favor um impecável jogo técnico de estudo de luzes, sombras e penumbras. É praticamente uma covardia comparar outros trabalhos de fotografia realizados no cinema com essa overdose de escuridão capturada pelas lentes vampirescas de John Alton. Mais um pouco, e o filme seria apenas uma imagem escura projetada na tela tendo sua estaticidade rompida por diálogos fantasmagóricos surgidos hora ou outra. Não se pode dizer nem mesmo que existe o tão famoso contraste acentuado dos noir, é preto no preto e os atores atirados em meio à penumbra em pelo menos 70% das cenas. Já nos outros 30%, mais parece que a celulóide tragou uns dois maços de cigarro do mais vagabundo e baforou em direção aos olhos do espectador. O apuro visual é maravilhoso, e combina perfeitamente com a dureza emocional do Cinema de Lewis.


Contando ainda com um desfecho cenograficamente inspirado na clássica seqüência final de Casablanca, esta pequena e atípica aventura sobre o sindicato do crime norte-americano merece lugar de destaque entre os grandes momentos obscuros do Cinema da clássica Hollywood. É bastante diferente de tudo o que foi feito até aquele momento em matéria de noir, apesar de levemente inspirado no excepcional Os Corruptos, de Fritz Lang - principalmente no que diz respeito à busca por um maior realismo na abordagem da corporação policial, potencializada pelo filme do alemão. Mas The Big Combo é muito mais audacioso e esquisito do que qualquer outro noir, especialmente por tratar de um gênero plenamente comercial da forma mais anticomercial possível. O menos romântico e ao mesmo tempo um dos mais apaixonantes filmes do movimento.

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