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Críticas

Cineplayers

O expressionismo de Tony Scott.

7,5

O passado condena Tony Scott, e não é sem razão que muitos dos seus primeiros filmes assombram a devida fortuna crítica com que o diretor mereceria ser tratado por conta de sua obra mais recente. Durante muito tempo associado a produtos cinematográficos descartáveis que ao menos serviram para torná-lo um nome forte na indústria, thrillers um pouco mais sólidos como Maré Vermelha (Crimson Tide, 1995) e Inimigo do Estado (Enemy of the State, 1998) mostraram que Tony poderia ser um realizador competente, mas o salto em sua obra foi quando Jogo de Espiões (Spy Game, 2001) em seu decorrer deixa de ser uma história tradicional de espionagem para se tornar um estranho jogo de manipulações entre os personagens e de ruptura e reconciliação entre os protagonistas, menos interessado na intriga do que na relação entre as suas figuras em cena. Poucos enxergaram na época esse avanço na carreira de Scott, e foi preciso cada um dos seus trabalhos seguintes ao longo de toda uma década para se compreender (goste-se ou não de seus filmes mais recentes) que eles guardam em si um projeto cinematográfico bem particular e propostas estéticas muito bem urdidas e nada desprezíveis.

O que salta aos olhos nesses trabalhos são o experimento e emprego de diversos tons na fotografia, na textura e no tratamento das imagens, os excessos estéticos e estilísticos com filtros diversos, talvez inéditos no cinema comercial norte-americano, e que alguns setores da crítica internacional apontam como próximos de um cinema de vanguarda. Suas narrativas e personagens se desenvolvem por meio de um fluxo não raro emocionais por meio dessas imagens retrabalhadas pelo olho de Scott e geralmente numa edição ultra-rápida que por vezes desafia a capacidade de apreensão do espectador, cabendo a este escolher por rejeitar ou ceder a essa entrega ao universo do cineasta inglês. O diretor sabe que uma imagem pode ou não ser somente o que se vê dela, mas que inevitavelmente ela se multiplicará para muitas outras. Um processo que não esconde uma substancialidade às vezes mais flagrante e em outras menos evidentes, mas sempre manifesta na obra de Scott, onde em cada filme cedo ou tarde geralmente ocorre uma transição de um cinema de suspense para um conteúdo psicológico mais desenvolvido, sem que os filmes abandonem a condição de thrillers a que se propõem, mas em regra sempre visando jogar o espectador diante das personalidades que ocupam o centro da tela.

Incontrolável (Unstoppable, 2009), seu mais recente trabalho, não é complexo e engenhoso como o mais aclamado Déjà Vu (idem, 2006), mas é como se uma das sequências-chaves do final do anterior O Sequestro do Metrô (The Taking of Pelham 123, 2009) ─ a do trem em alta velocidade e sem condutor ─ fosse estendida para uma hora e meia que serve tanto para a orquestração de uma narrativa de pura tensão quanto um veiculo para as obsessões do estilo de Tony Scott. O filme é centrado em dois maquinistas que buscam parar um trem de 800 metros que se desgovernou e atravessa uma vasta paisagem e áreas densamente povoadas, transportando produtos químicos em alguns dos vagões e vinte mil litros de diesel em seu tanque. O tema serve de pretexto para explorar relações sociais e particulares a partir de um desastre inicial e uma situação de colapso iminente.

Os filmes da fase madura de Scott tratam todos direta ou indiretamente de viver a sombra da ameaça de terrorismo parar tirar histórias particulares, um documento histórico sobre o povo norte-americano na nossa época, mas nunca de forma maniqueísta e geralmente apontando como vilões representantes indesejados da própria América ou pintando de maneira pouco simpática autoridades do seu país (desde o presidente interpretado por Donald Pleasence em Fuga de Nova York [Escape from New York, 1981], de Carpenter, que poucos chefes do executivo norte-americano foram mostrados de maneira tão pouco digna quanto o prefeito de Nova York em O Seqüestro do Metrô) e alguns desses filmes recentes de Scott também existem para expressar que catástrofes contemporâneas não se restringem ao terrorismo.

O que percebemos de imediato em Unstoppable é a continuidade que Scott dá a O Sequestro do Metrô, apresentando seus heróis não mais como homens da lei ou representantes da justiça americana, mas tirados dentre os homens comuns, trabalhadores e proletários, como o condutor veterano encarnado por Denzel Washington (que acaba de receber seu aviso de dispensa após 28 anos de serviços prestados) e o seu auxiliar interpretado por Chris Pine. Típicos heróis hawksianos dispostos a sacrificarem até suas vidas no cumprimento do dever, não especulam sobre as agruras da humanidade nem proferem mensagens ufanistas ou patrióticas, apenas encaram sem afetação o trabalho que lhes couberam como um fato em suas vidas e lidam com ele da melhor forma que conseguem, resultando em uma camaradagem advinda do profissionalismo e da interação nesse trabalho. Scott pode até flertar com questões sociais, no entanto o seu cinema se interessa mais por indivíduos do que pela idéia de "povo", "massa" ou "classe".

Unstoppable dá continuidade também à postura estética que Scott vem desenvolvendo com grande consciência, sem se limitar a truques ou exercícios de estilo. Se em termos de conteúdo, seu cinema mais recente é antigenérico, violentando os clichês de gênero mais do que propriamente aderindo a eles, sua narrativa imagética é imersiva, incrementando o lado atmosférico e a excitação sensorial do filme, por vezes levando o espectador a um limite da percepção. Mas Unstoppable existe de tal forma que as obsessões autorais de Tony Scott podem passar despercebidas, sem perturbar o público que vai assistir a uma aventura movimentada como outra qualquer, porque o realizador teve êxito ao encaixar num tema batido muito do que é particular e precioso em seu cinema.

Comentários (1)

Vinícius Aranha | segunda-feira, 20 de Agosto de 2012 - 16:26

Ótima crítica. Filme bem subestimado esse.

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