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Críticas

Cineplayers

O fim de uma (micro)era.

9,0
Documentário observacional. Assim é chamado o estilo de filme que o cineasta japonês Kazuhiro Soda realiza. Ele chega até o objeto a ser filmado e simplesmente liga a câmera. Geralmente não é mais do que isso, e Soda não é um garoto que se formou agora. Com passagem na ficção, ele se firmou nos docs e deles não sai há 10 anos. Ainda que o Ocidente não o tenha descoberto até então, isso não o impede de realizar obras que captam o outro pra traduzir o mundo ao redor, através de micro-observações e com mínima interferência. Em Minatomachi, Soda foi até Ushimado, um vilarejo no Japão que sobreviveu anos da pesca e é a terra natal da esposa e produtora do diretor, e hoje está em rota de desaparecer. O realizador, que mora em Nova York há 15 anos, retoma suas raízes em um processo de imersão em mão dupla.

O filme parte de um pescador de 86 anos, Wai-Chan. Ainda trabalhando num processo arcaico, onde costura a própria rede, a deixa submersa até a madrugada e volta pra retirar os peixes antes do sol nascer, tudo isso sozinho. Ao acompanhar sua rotina até o ponto de chegar no mercado produtor para vender sua pesca, Soda estabelece um jogo de aproximação com o objeto filmado e o segue. No entanto, após vermos o leilão dos pescados, o realizador descola sua lente do pescador e passa então a seguir uma comerciante de peixes local. E dela para um casal de consumidores. E deles para uma senhora que enfeita o túmulo de seus antepassados no cemitério. E com isso o filme vai fazendo um mapeamento daquele vilarejo à beira da extinção, enquanto debate a própria.

Ao mesmo tempo em que faz uma radiografia de cada uma das atividades empreendidas pelos personagens em fascinantes registros cotidianos, Soda também captura o espírito da passagem do tempo naquele microcosmos, fadado ao desaparecimento, e talvez até a mais que isso - à beira do esquecimento, o que é muito mais grave e desesperador, ainda que o diretor traga a poesia para cada tomada, e nunca trate seus personagens com urgência. Eles constroem seu tempo e estabelecem também eles mesmos seu ritmo de vida, que apesar de tudo nem é mostrado como vagaroso, muito pelo contrário. Dentro das limitações do seu objeto, o que vemos é o conforto em torno de uma rotina até bem ágil, ainda que filmada em regime de contemplação.

O cuidado com que as informações são passadas é claro, nada é gratuito ou explicitado, mais ou menos como no ritmo que aquelas pessoas encaixaram em suas vidas. As passagens onde são inseridos os resultados do tempo hoje no filme não são tratados com pesar ou melancolia, e nem se prendem a isso por um tempo que se estenda. Ao redor daqueles senhores e senhoras, as marcas do que se tornou são pinceladas, ao passo que Soda apenas trata de seguir cada um deles com atenção e carinho. Aos poucos cada um ali mostrados, dos humanos aos bichanos em profusão que não param de aparecer, tem no diretor uma ferramenta para mantê-los impressos numa História que pode ser passado a qualquer momento.

Faltando algo em torno de meia hora pro filme encerrar, uma personagem coadjuvante finalmente consegue o que parecia querer desde o início e o filme conquista uma estrela. A senhora Komiyama é uma espécie de intrusa desde a primeira cena, pontualmente tentando capturar as lentes pra si. Nessa reta final, Soda parece permitir sua entrada e ela faz uma marca indelével não apenas no filme como também no espectador. Seu olhar, sua história de vida e sua despedida resumem as intenções de um filme muito humano, que se impregna de suas peles e suas ações para contar uma narrativa sobre o presente.

Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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