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Críticas

Cineplayers

Um filho bastardo, mas ainda assim relevante.

7,0

Quando determinado artista veste uma roupa e a coloca em destaque dentro de sua extensa obra, o mesmo também corre o risco de ser constantemente interpretado de forma desleixada pelo seu público, tendo todo o seu trabalho submetido a visões superficiais que tendem a limitar as diversas possibilidades de leitura ali contidas. É verdade que George Romero, a despeito de seu símbolo imutável em meio à cultura pop, é conhecido há um bom tempo pela busca por inovações em suas inspirações artísticas (elemento representado de forma máxima na sacada genial de repetir o artifício dos zumbis para atender a uma extrema necessidade de contar coisas diferentes), mas também é justo dizer que qualquer forma mais radical de mudança em sua filmografia é tomada predominantemente com estranheza ou até mesmo indiferença, criando aí uma contradição. Romero abraça a cultura pop para adoecê-la. A riqueza de seu trabalho pode ser facilmente absorvida, dada a sua linguagem tão provocadora quanto acessível; é constante o uso de simbolismos comuns ao universo ocidental para que, ao final, seja realizada uma sabotagem (sendo a destruição do “sonho americano” a ação mais notável). A importância de filmes menos lembrados de sua carreira é grande por pelo menos dois motivos: 1) eles que podem desencadear reflexões bastante produtivas acerca de todo o mito por trás daquilo; 2) a questão óbvia de que o esquecido pode ser algo subestimado (como é o caso de nosso filme).

Romero introduz Instinto Fatal (Monkey Shines, 1988) com o protagonista já em evidência, revelando o que certamente se trata de mais um dia comum na rotina do rapaz: ele acorda e beija a sua companheira ao seu lado, faz alongamento (detalhe para o fato de que a câmera capta o homem nu, de costas – a representação do tão conhecido culto ao corpo humano, a imagem da força na tradicional visão do masculino) e vai se exercitar fazendo a sua caminhada. É interessante a forma como a quebra de um idealizado estilo de vida é filmado; o momento inicial, por mais que seja breve, cria toda a noção necessária para que a perda daquele ser seja devidamente compreendida. Os trabalhos de George Romero costumam mirar em relações humanas e conflitos consequentes; Instinto Fatal é certamente o seu momento mais sádico em toda essa obsessão: primeiramente, devemos observar que, ao reduzir o seu campo narrativo (é sobre aquele personagem e as pessoas que estão ao seu redor, e não sobre um fato e as pessoas que estão inseridas nele), o autor tem em mãos a oportunidade de evidenciar suas intenções; em seguida, a particularidade de existir um centro das atenções faz com que praticamente qualquer ação e consequência tenha efeito direto sobre o mesmo (ou seja, quase tudo o que tiver de acontecer irá ter relação específica com o protagonista). Por mais que se sustente sob a cúpula de filme de horror, existe aqui a peculiaridade não se prender a um gênero; não significa, porém, que o filme não seja identificável dentro de parâmetros tradicionais, mas sim que o que existe aqui é simplesmente um passeio entre mundos diferentes e as diversas formas que eles têm a oferecer para retratar a dinâmica do que se passa em tela.

De qualquer maneira, esse tipo de pluralidade de lidar com diversos gêneros sai muitas vezes como um conjunto de armadilhas; Instinto Fatal consegue se desviar de algumas, mas cai em outras. Por mais que o conteúdo do romance no qual se baseou seja desconhecido pelo espectador (como se trata do caso deste que vos escreve), não é muito difícil de reparar que o que presenciamos é um exercício baseado em conceitos tradicionalmente cinematográficos, aqui mesmo construindo a sua dinâmica (sem se esquecer do fator óbvio de que falamos de Cinema) ao demonstrar flerte com a Ficção Científica (a abordagem da quase subtrama dos experimentos em macacos – o abuso do branco e de luzes vermelhas para compor o cenário de laboratório), Suspense, Terror (estes dois que estão representados de forma máxima na figura da macaquinha), Romance (a paixão improvável que revitaliza o rapaz abalado pela sua condição pós-acidente) etc. Com tanta coisa em mãos, seria pouco evitável a existência de momentos de deslize: o balanceamento irregular entre os personagens (enquanto uns são ótimos, outros podem ser jogados no ralo sem o mínimo de problema – inclusive, parece que isso também é partilhado entre eles, como se nota na reação de indiferença quando algum tosco morre), a própria dificuldade em mesclar os diversos elementos postos em mesa (talvez por conta de um novo processo de corte que o filme sofreu pelo estúdio contra a vontade de seu diretor – um tremendo banho de água fria para uma primeira experiência em um estúdio de Hollywood) etc.

A força de Instinto Fatal pode ser realmente sentida quando o seu campo de visão se reduz àquele - quase - triângulo amoroso bestial; tudo o que realmente importa no filme está ali, que é o que insere o ponto central no maior conflito que move a narrativa, o rasgando em dois lados – entre o rancor e a superação. Aliás, algo que não pode passar batido: a macaquinha, genial. De longe a maior personagem do filme, representa a principal motivação das emoções desencadeadas; a materialização da ideia de deixar um ser humano completamente a mercê de um bicho com três palmos de altura é realmente uma coisa curiosa (e isso, quando utilizado para exercitar a atmosfera negativa, chega a ser ridículo de tão impressionante). A fluidez no tratamento para com o animal e sua relação com o seu dono consegue provocar praticamente a transformação disso em apenas um objeto, unindo o humano e o selvagem; essa intimidade é capaz de desencadear facilmente um tipo especial de contato com o espectador – talvez pela sua própria condição de ser uma obra claramente de personagens. É possível supor que esse joguete conflituoso é decorrente de uma inspiração que certamente Michael Stewart, o autor do romance Monkey Shines, teve em relação ao Monstro de Frankenstein; o olhar de George Romero, este que está em nossas mãos, contribui para o conceito do artista como um bicho faminto que consome o mundo e o cospe – de uma maneira ou de outra - à sua forma.

É claro que não temos condições de saber exatamente a forma como o filme foi originalmente planejado; na certa teríamos algo bem melhor. Mas isso aqui tem riqueza e apresenta um olhar ímpar, coisa de autor mesmo: um filho bastardo em sua filmografia, mas ainda assim tem de seu sangue nas veias, seu olhar. Pequeno, mas ainda assim importante – por vários motivos (entre eles, o fato de que o ouro da mentalidade principal por trás disso não está unicamente visível em obras como A Noite dos Mortos-Vivos [Night of the Living Dead, 1968] e Despertar dos Mortos [Dawn of the Dead, 1978]). Curioso, no mínimo.

Comentários (11)

Victor Ramos | sexta-feira, 07 de Agosto de 2015 - 16:02

Então, exatamente por essa humanização. O que o bichinho faz é somente para agradar ao seu dono (Ella está mais como uma forma de materialização dos sentimentos rapaz que como uma vilã, no sentido mais comum da palavra). Há muita dor, mas também existe a ideia da superação aí e tals.

Jules F. Melo Borges | sexta-feira, 07 de Agosto de 2015 - 21:05

Eu não vi bem como uma "materialização", mas mais uma "sinestesia" (Acho que não devia usar essa palavra aqui, mas Ok). Durante o sono, Allan se conecta com Ella, e aí que vem a parte difícil de engolir da trama.
Eu diria que houve mais uma "infecção". Ella foi infectado pela humanidade de Allan, e vice versa. Acredito que a diferença é que Ella, como animal, é incapaz de controlar os próprios instintos, e saí na matança realizando o que Allan desejava em algum nível, enquanto esse é capaz de controlar. Acho que a cena lá no final simboliza bem isso.

Victor Ramos | sexta-feira, 07 de Agosto de 2015 - 21:23

haha, por isso mesmo que considero a tal abordagem de ficção científica tímida. O que vi aí foi sobre uma série de sentimentos, portanto esse aspecto mais baseado em explicações externas (normalmente se sustentando nos experimentos realizados pelo amigo do rapaz) pouco mostrou relevância; a tal cena da dança que falei é executada em dois momentos do filme (sendo o segundo momento exatamente no clímax, SPOILER sendo a situação em que o bicho é derrotado, pela sua fraqueza), o que sustenta o meu ponto de vista. Concordo sobre esse papo de "infecção" que ocorre entre um e o outro (até mesmo porque isso é explícito na trama), mas acho que tudo no final termina por convergir para o lado emocional do humano, que é o que se respira do início ao fim.

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 08 de Agosto de 2015 - 12:20

Resumindo: nãio interessa o que você entendeu ou interpretou do filme, ele é um "filmão"!!! Romero é mal amado. O cara optou por uma linha de abordagem pra tratar de temas relevantes e primordiais e é taxado disso e daquilo e tem quem diga que ele precise se reinventar, sendo que ele fez isso a carreira toda - ou alguém pensa que é fácil manter a pegada por anos a fio dentro de uma mesma roupagem?

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